Quando era mais nova, iniciei um diário. Mas não era um diário no
sentido convencional. Não se tratava de um registo das minhas actividades
quotidianas nem, tampouco, apesar da idade que tinha na altura, de um conjunto
de confissões de adolescente.
Era quando via um filme, ouvia uma música, lia um livro, etc., que me
despertavam determinados pensamentos ou emoções, que eu escrevia. Nunca foi uma
escrita muito assídua e, com o passar do tempo, tem-no sido cada vez menos.
Para terem uma ideia, a última entrada datava de 2015!
Agora que me apeteceu escrever, lembrei-me de partilhar a entrada no
blogue.
Tem a ver com uma série que já não é propriamente recente, pelo que
poderá não ser relevante para a maioria das pessoas, mas pode ser que interesse
a alguns que, como eu, tenham começado a vê-la mais tarde.
Eis, então, a entrada:
15 de Novembro/7 de Dezembro de 2019
Olá, Diário
Há muito tempo que não te escrevia sobre aquilo que, inicialmente, me
propus escrever-te. Os pensamentos ou emoções suscitados por determinados
livros, filmes, músicas… Na verdade, acho que pensei até que esses dias tinham
acabado.
Suponho que é natural que, à medida que vamos ficando mais velhos, vão
sendo cada vez menos as coisas capazes de nos fazerem sentir emoções
suficientemente intensas para suscitar a necessidade de escrever sobre elas.
(…)
Recentemente, voltei a sentir essa necessidade de te escrever. E esse
desejo foi suscitado pela série Grimm.
Bem, não exactamente pela série, que inicialmente nem segui por a premissa me
parecer um pouco tola: um homem que, ao contrário do comum dos mortais, tem a
capacidade de ver quando certas pessoas se transformam em determinadas e
variadas criaturas (na série designadas por Wesen),
o que faz dele um Grimm.
Como eu dizia, não foi exactamente pela série, mas sim por uma
personagem em particular: Sean Renard.
Como disse, inicialmente, não segui a série (verdade seja dita, também
são raras as que sigo porque a maioria pouco melhor parece do que telenovelas a
que deram o nome um pouco mais simpático de série). No entanto, passava por
vezes por ela quando fazia zapping,
embora não me demorasse no canal em que estava a dar. Mas comecei a demorar-me
uma vez ou outra, primeiro por falta de melhor opção, depois porque comecei a
ficar cativada pela personagem em questão. Nessa altura, ainda não seguia
verdadeiramente a série. Por vezes, via bocados de episódios, ou então, via um
episódio agora, depois estava uns quantos sem ver, depois via outro. Devo ter
começado a ver assiduamente, talvez, a partir do fim da segunda temporada,
início da terceira. E agora que a série acabou, o que me fez sentir a
necessidade de escrever foi a desilusão com o tratamento que foi dado à
personagem a partir da temporada 5. Nomeadamente, o facto de o terem tornado num
vilão.
Bem sei (quer porque foi óbvio ao longo de toda a história, quer
porque entretanto fui ver os episódios que me faltavam) que ele não começou por
ser, propriamente, um dos “bons da fita”. Afinal, entre outras coisas pouco
recomendáveis, ele tentou matar a tia de Nick.
Se, noutras circunstâncias, isso teria sido o suficiente para me fazer
antipatizar com a personagem, a verdade é que, nesta série, mesmo algumas das
personagens mais benévolas têm passados sombrios. Veja-se o caso do inofensivo
Blutbad Monroe. Várias vezes, ao longo da história, nos é dado a entender que,
noutros tempos, Monroe caçou seres humanos.
Isso predispõe-nos a ser mais tolerantes porque é a única maneira de
não nos desinteressarmos das personagens e, consequentemente, da história.
E voltando a Renard, mesmo nessa fase inicial em que nem sempre agiu
como pessoa de bem, também nunca foi um homem totalmente desprovido de valores
ou sentido de lealdade.
E a evolução da personagem até ao fim da quarta temporada foi no
sentido de se aproximar mais dos heróis da história e, consequentemente, do
Bem.
Ainda que a sua aproximação, a sua aliança tácita com Nick, tenha
começado também por interesse, foi sendo moldada, se não numa amizade, pelo
menos, em estima. Não é credível que tentasse matar Nick, perseguindo todos os
seus amigos.
A desilusão foi ainda maior porque a terceira e, sobretudo, a quarta
temporadas tinham-nos dado a conhecer um lado mais humano – até mais vulnerável
– da personagem. Primeiro, através da relação com a mãe e depois, pela forma
como se debateu com a possessão pelo espírito do Estripador.
Talvez pudesse ter feito sentido que o Sean Renard da primeira e
segunda temporadas se tornasse no Sean Renard da quinta e da sexta, mas não o
da terceira e quarta temporadas. Não é credível que o mesmo homem que ficou tão
perturbado por ter matado três mulheres quando nem sequer era culpa dele,
aderisse, de livre e espontânea vontade, a uma organização homicida como a
Garra Negra.
Até esse ponto, tinha sido uma personagem tão bem pensada, desde o seu
historial – e consequente ambiguidade entre o Bem e o Mal – até à escolha do
nome que, de alguma forma, tinha precisamente a sonoridade certa.
Foi essa ambiguidade entre o Bem e o Mal primeiro, e depois a sua
evolução no sentido do Bem que o tornaram numa personagem suficientemente
complexa para ser interessante. Foi uma pena que tivessem trocado essa
personagem interessantemente complexa pela emoção barata de um vilão mais
convencional.
No entanto, em nome da sinceridade, tenho de admitir que, normalmente,
na vida real, não acredito muito que as pessoas mudem para melhor, o que
significa que, quando tal acontece na ficção, também não me parece lá muito
verosímil. Creio que, se esta vez foi uma excepção, isso se deveu em larga
medida ao facto de a interpretação de Sasha Roiz ter sido tão convincente.
E quanto às motivações de Renard? Bom, parece ter sido, sobretudo, uma
questão de ambição. Até aí, tudo bem. Renard é, de facto, um homem ambicioso e
com sede de poder. Mas é também um homem que não se contentaria com um poder de
fachada. Lembro-me de, numa das primeiras temporadas, alguém lhe perguntar se
alguma vez iria tomar o seu lugar à frente da Família Real a que pertencia. Ele
responde que sim, mas acrescenta: “But only on my terms” (“Mas só nas minhas
condições”). Isso sim, vai de encontro à personalidade de Renard. Ele não
aceitaria ser um fantoche. E ele percebe bem que é isso que será para a Garra
Negra. Por isso diz a Adalind “You and I don’t have complete control here”
(“Não temos o controlo total”).
A mim, parece-me que ele preferiria manter o poder mais modesto mas
mais autêntico de Capitão da Polícia. Além disso, para quem tinha sonhado
tornar-se um príncipe, tornar-se Mayor parece ficar demasiado aquém para
explicar a corrupção da personagem.
A desilusão foi tão grande que, apesar de, como disse, não acreditar
muito que as pessoas voltam do Mal para o Bem, tive esperança que, até ao fim
da série, houvesse uma redenção da personagem. E acho que até houve uma tentativa
disso, mas foi manifestamente insuficiente.
Quando, após sair derrotado do confronto com Nick, ele volta a ser
abordado pela Garra Negra para retomarem os seus esforços, desta vez, ele
rejeita-os. E Meisner, que, antes de morrer, lhe tinha dito que tinha escolhido
o lado errado, diz-lhe agora, em versão de assombração, que desta vez, escolheu
o lado certo. E acaba por lhe salvar a vida, o que parece sugerir que, visto
ele ter voltado ao bom caminho, lhe perdoou.
Mas a verdade é que não sentimos que ele tenha recusado porque caiu em
si e assim lhe ditou a consciência. Ele apenas percebeu que não consegue vencer
Nick. Não há nisso grande redenção.
Mais tarde, ele pede desculpa a Adalind (mas Adalind não foi a única
pessoa a quem ele fez ou tentou fazer mal) e diz-lhe que tudo fará para
proteger do Zerstörer não só Diana, sua filha, mas também Kelly, que não é seu
filho. E, efectivamente, “morre” a tentar impedir que o Zerstörer leve Diana.
Mas, mais uma vez, morrer a proteger a própria filha não é grande redenção. Se
ele tivesse morrido a proteger mais directamente o bebé Kelly, por exemplo,
talvez eu pudesse sentir que ele se tinha, pelo menos em certa medida,
redimido.
Além disso, para todas as personagens à excepção de Nick e Diana, os
eventos que decorrem entre o momento em que Nick regressa pelo espelho sendo
seguido pelo Zerstörer e o momento em que atravessa o portal que se abre após
ter derrotado o Zerstörer, será como se não tivessem acontecido. Portanto, quer
a sua “morte”, quer o pedido de desculpas, serão como se nunca tivessem tido
lugar.
Parte de mim gosta de pensar que, quando ele matou Bonaparte, ainda
que tal tenha sido resultado do feitiço de Diana, a verdadeira razão por que o
feitiço resultou tão bem, foi porque bem lá no fundo, ele não queria matar
Nick. Mas claro que não faz sentido, visto que logo depois, tenta
responsabilizar Nick por esse e outros eventos e manda persegui-lo com ordem
para atirar a matar.
Houve mais algumas coisas na série que não me agradaram, mas o que
realmente me desiludiu, por se tratar da minha personagem preferida e ter
sentido que a estragaram, foi o percurso de Sean Renard a partir da quinta
temporada.
No entanto, talvez valha a pena referir, de passagem, essas outras
coisas.
A partir de determinado momento, houve uma espécie de “baralha e torna
a dar” que apanhou várias personagens.
Compreendo que o plot twist
pode ser uma forma de dar nova vida a uma história, mas acho que neste caso,
houve um exagero.
Não foi só Renard tornar-se mau. Foi também Adalind tornar-se boa,
Juliette tornar-se má e depois novamente boa como Eve…
O percurso de Adalind tinha sido o oposto. Se inicialmente agia sob a
influência de Renard, industriada por ele, a partir do momento em que perde os
seus poderes, começa a agir por conta própria, aliando-se aos Royals, movida por vingança, tornando-se
cada vez mais vilã. Pelo menos, até ao nascimento da sua filha Diana. O que fez
depois de lha tirarem, não sei se diria que é desculpável, mas é, pelo menos,
compreensível, visto que o fez na convicção de que assim poderia voltar a estar
com a filha.
Quanto ao que se passou com Juliette, apesar de tudo, penso que poderá
fazer mais sentido, quer do ponto de vista da lógica da personagem, quer do
ponto de vista do interesse para a narrativa.
Começando pelo interesse para a narrativa, a verdade é que Juliette
não era uma personagem particularmente interessante ou dinâmica. Como a
perfeita namoradinha do herói da história, era bastante unidimensional,
semelhante a tantas outras, em tantas outras séries de televisão, pelo que
tinha a ganhar com a mudança.
Não era o caso de Renard, que foi sempre uma personagem complexa,
multidimensional e, portanto, interessante. (E se foi uma questão de precisarem
de um novo vilão agora que os Royals tinham sido praticamente derrotados e não
queriam introduzir uma personagem completamente nova, eu teria preferido que
tivessem mantido Juliette malévola em vez de a transformarem em Eve).
E quando falo da lógica da personagem, o que quero dizer é que,
enquanto Renard, devido às suas circunstâncias – ter nascido meio Zauberbiest,
ter tido de recorrer a alguns esquemas e, certamente, a alguns contactos menos
recomendáveis para escapar aos Royals
– sempre conviveu com o Mal, Juliette teve uma vida mais resguardada do Mal.
Não no sentido de ser vítima do Mal, mas sim no sentido de ser tentado pelo
Mal.
Quando se convive com o Mal, cria-se defesas contra ele. O facto de
Renard sempre se ter debatido entre o Bem e o Mal torna mais improvável que tão
facilmente sucumbisse ao Mal. A mudança de Juliette faz assim mais sentido.
Quando, de repente, se transforma numa Hexenbiest, não tem defesas contra a
natureza da criatura que se tornou.
Não faz também grande sentido, para mim, que Nick e Adalind acabem por
formar par romântico. E não é por achar que ele deva alguma espécie de lealdade
a Juliette. Não, certamente, depois de ela ter sido responsável pela morte da
mãe dele! (Já para não falar de todos os vizinhos que os Royals aniquilaram depois de ela lhes ter dado as suas localizações).
E também não é só pelas coisas que ela lhe fez a ele. É também pelas
coisas que ele lhe fez a ela. Primeiro, despojou-a dos seus poderes e depois,
ajudou a tirar-lhe a filha. Este último acto, por muitas e boas razões que ele
possa ter tido, nenhuma mãe perdoaria.
Também não me parece fazer sentido que, depois de todos os sacrifícios
que Adalind fez, durante a primeira gravidez, submetendo-se a um ritual
extenuante – e por vezes até humilhante e degradante – para recuperar os seus
poderes de Hexenbiest, de repente, depois de voltar a perdê-los temporariamente
ao testar a poção destinada a Juliette, não queira que eles voltem.
Outra coisa que me custa entender é que na cena “20 anos depois”, com
Kelly e Diana já adultos, Diana diga: “Mom and Dad are waiting” (“A mãe e o pai
estão à espera”). Sabemos que eles têm a mesma mãe, mas não o mesmo pai. E,
independentemente dos defeitos de Renard, tanto quanto pudemos perceber, Diana
era bastante próxima do pai. É um pouco estranho que ela se refira ao padrasto
como “pai” sem que nos seja dado ver se e como ela se afastou de Renard. Talvez
ele se tenha deixado tentar novamente pelo Mal e ela, já mais velha, com idade
para perceber, o tenha rejeitado? Se assim foi, então, não houve mesmo
redenção.
A questão seguinte é apenas um pormenor, mas ainda assim, acrescento
apenas que foi pena não termos chegado a assistir a um woge de Diana.
Para rematar, direi ainda que, apesar de todas estas questões, é pela
primeira que mencionei – a transformação de Sean Renard numa personagem
malévola a partir da quinta temporada – que, para mim, esta será sempre uma
série de quatro temporadas. Prefiro fingir que as duas últimas não existiram.