domingo, 14 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo XIV (PROVISÓRIO)

Em Novembro de 1833, tendo o duque sido informado de que se encontravam tropas inimigas na Asseiceira, e embora o número de homens do exército realista fosse superior ao do nosso, decidiu lançar um ataque sobre os absolutistas, pois não nos encontrávamos longe daquela região e o duque contava com reforços que viriam da capital. Para o duque, o elemento surpresa era fundamental, pelo que montámos o acampamento a razoável distância das tropas realistas. Quando acabámos, era já noite.
            No dia seguinte, ao acordar e espreitar pela abertura do abrigo, julguei que se tinha dado um milagre. A maior parte do acampamento ainda dormia, mas Diogo acordara já e também ele, assim como todos os que se encontravam despertos, olhavam para o mesmo que eu com o ar de quem julga estar a ter uma visão. Pelo acampamento, umas cinco ou seis raparigas traziam-nos alimentos e água fresca, mas, mais importante do que isso, traziam o seu sorriso, a sua leveza, a sua inocência.
 
– Que vem a ser isto? – perguntou o sargento a uma delas. – Quem são vocês e o que andam a fazer?
– Não se preocupe – respondeu a rapariga, de cabelos negros e porte altivo. – Somos enfermeiras e estamos habituadas a lidar com soldados. Também nós queremos ajudar a causa. Sabíamos que vinham e viemos trazer-lhes alimentos e água para beber.
– Bom, tenho a certeza de que os soldados vos estão muito gratos, mas agora, vão-se embora daqui. Isto não é lugar para vós.
– Não se zangue, nós queremos ajudar – respondeu ela, sem se mostrar intimidada pelo tom do sargento.
– Ah, sim?! Por acaso tenho cara de louco? Acham que vou deixar um bando de mulheres combater?
 
            Diogo, eu e mais alguns rapazes observávamos, divertidos, o contraste entre o porte sereno da rapariga e a voz irritada do sargento.
 
– Não viemos para combater. Estamos como enfermeiras além, naquele convento. Infelizmente, nem mesmo aquele santuário foi poupado. Sofremos um ataque há dois dias.
 
            Olhámos na direcção que ela apontou e vimos o referido edifício. Ficava num alto, pelo que conjecturámos que não seria de muito fácil acesso aos feridos, principalmente, porque tínhamos falta de cavalos para os transportar. De qualquer forma, era melhor do que nada, e as raparigas pareciam ter tanta vontade de ajudar que ficámos deveras felizes por elas ali se encontrarem.
 
– As Irmãs recolhem os feridos e nós ajudamos a cuidar deles – completou a rapariga.
 
            O sargento não respondeu e virou costas. À medida que se afastava, resmungava ainda:
 
– Mulheres no meio do exército! Era só o que nos faltava...
 
            Tão divertidos estivéramos a ouvir a conversa entre o sargento e a rapariga que mal notáramos as outras, mas quando o sargento virou costas, reparei numa delas que, mesmo ao longe, me pareceu familiar. Os cabelos luminosos e a forma graciosa como se movia não deixavam margem para dúvidas.
 
– Aquela moça... – disse eu para Diogo. – É Maria da Luz!
 
            Diogo olhou na direcção onde eu fixara o olhar.
 
– Por Deus!... – exclamou. – É mesmo a tua irmã! Mas o que faz aquele anjo aqui, no meio do inferno da guerra?
 
            Não perdi tempo a pensar na resposta e corri para ela, seguido por Diogo. Luz sobressaltou-se ao ver dois soldados a correr na sua direcção, mas logo reconheceu o irmão e o amigo de infância.
 
– Pedro! Diogo! Até que enfim vos encontro! Estava quase a perder a esperança...
– Que queres dizer? Andavas à nossa procura? Onde está o teu marido?
 
            Luz baixou o olhar como que envergonhada, mas não havia tristeza na sua expressão.
 
– Não cheguei a casar-me. – disse. – Tu tinhas razão, Pedro. Não fui capaz de me casar com um homem que não amava. Além disso, percebi que também ele te repudiaria por seres liberal, e se ao pai eu podia tolerar isso, tal não aconteceria com o homem com quem iria partilhar a minha vida. Eu disse-te um dia que o sacrifício não seria tão grande porque embora eu não amasse Álvaro, também não amava mais ninguém e por isso não precisaria de abdicar da minha própria vontade. Mas eu mentia sem saber.
– Queres dizer que há alguém no teu coração? – indaguei.
– Sempre houve. Eu é que estava demasiado cega para ver aquilo que o meu coração se esforçava por me mostrar.
– E quem é?
 
            Luz não pôde evitar olhar de relance para Diogo quando respondeu:
 
– Não me leves a mal, meu irmão; nem tu, Diogo, meu bom amigo; mas os segredos do coração de uma mulher devem permanecer segredos até que...
– Até que alguém os desvende – completou Diogo.
– Sim, é isso... – acabou por concordar a minha irmã.
– E como foi que Álvaro reagiu quando lhe disseste que ias romper o noivado?
– Não muito bem. Da última vez que o vi, agredi-o com uma bofetada...
– Esse patife faltou-lhe ao respeito? – indagou Diogo, erguendo-se com os punhos cerrados e as faces ruborizadas pela fúria.
 
            Eu próprio estava certo de que só algo de muito grave poderia Álvaro ter feito para tanto aborrecer a minha irmã, de feitio geralmente tão doce.
 
– Não, não me desrespeitou. Pelo menos, não da forma como estão a pensar.
 
            Luz respirou fundo e preparou-se para nos contar toda a história. Estávamos sentados na erva fofa, tal como costumávamos fazer na herdade do Roseiral, quando éramos crianças.
 
– Quando o pai me perguntou se eu concordaria em casar-me com Álvaro, eu pensei de facto na possibilidade de aceitar, mas pedi-lhe alguns dias para reflectir. Foi mais ou menos por essa altura que escrevi para casa da tia Francisca a comunicar-vos o facto. Acabei por dizer que não, mas o pai jurou que se eu não o fizesse, ele havia de te perseguir, e a ti também, Diogo. Que havia de os encontrar e fazer com que fossem presos por traição. Não seria muito difícil, no meio desta guerra. Disse que te pouparia a vida porque não querer passar pela vergonha de ver o filho enforcado, mas que com Diogo não seria tão brando.
– Mas que canalha!...
– Não, Pedro, não é verdade! Ele não era sincero em nada do que dizia. Dizia-o para me assustar, para me forçar a aceitar Álvaro. E conseguiu-o; especialmente porque entretanto aconteceu o cerco do Porto e eu receava que ele tivesse, de facto, poder para vos prejudicar. Mas cedo se começou a ouvir dizer que o cerco era uma batalha perdida para os miguelistas. Fiquei feliz, pois assim, o pai não os alcançaria com tanta facilidade e, entretanto, ouvi, sem intenção, uma conversa entre o pai e Álvaro, e fiquei a saber que Álvaro não só tinha conhecimento das suas ameaças como se oferecera para ser ele próprio o seu executor. Comecei a sentir um enorme ódio contra Álvaro, que dizia amar-me e, no entanto, pouco se importava com os meus sentimentos; contra o pai, que se sentia no direito de controlar a minha vida; contra o absolutismo fanático dos dois...
– Uma noite, já nós estávamos na casa da tia Francisca, Álvaro veio jantar connosco e eu disse na frente de todos que tinha decidido romper o noivado; que só aceitara tal união sob ameaça, mas que agora já não precisava de ter medo, pois o cerco havia sido levantado e eu havia de vos encontrar antes deles e impedir que caíssem nas suas armadilhas. Cheguei mesmo a dizer-lhe que o odiava e que seria incapaz de continuar a chamar pai a alguém que era capaz de mandar perseguir um filho, meu irmão, e um amigo de infância dos seus dois filhos. Disse tanta coisa que julguei que, pela primeira vez, ele me fosse bater, mas em vez disso... desatou a chorar.
– Chorar?! D. José Ávila?
 
            Nunca me passara pela ideia que os olhos do meu pai tivessem a capacidade de verter uma única lágrima.
 
– Como uma criança – confirmou Luz. Nunca o tinha visto assim. Pôs-se muito vermelho, começou a ficar sufocado, com falta de ar... Julguei que morria. A tia e Álvaro socorreram-no e levaram-no para o quarto, enquanto eu fiquei na sala, sentindo-me culpada por ter dito todas aquelas coisas horríveis. Enquanto o médico que a tia mandou chamar assistia o pai, Álvaro veio ter comigo para me lançar palavras ofensivas por eu ter quebrado a palavra dada. Não me pareceu que aquilo que ele dizia merecesse resposta, pelo que me mantive em silêncio enquanto ele me ofendia, mas quando ele disse que se o pai morresse, a culpa seria minha, e que ele estaria no enterro só para me fazer sentir mais profundamente essa culpa, não me contive e esbofeteei-o. Ele saiu sem dizer mais nada, mas eu bem pude perceber o desprezo no seu olhar.
– Não deve importar-se com isso. Não precisa do juízo de um homem que não respeitou os seus sentimentos para sentir respeito por si própria. Não fez nada de desonesto.
– Eu sei, meu bom Diogo – respondeu a minha irmã, tomando-lhe a mão. – Não foi isso que me preocupou, mas sim o estado de saúde do meu pai. Depois de o médico sair, o pai pediu à tia que me fizesse entrar no quarto e nos deixasse a sós. Jurou então que nunca pensara verdadeiramente em mandar-te prender e que apesar de continuar ressentido contra ti, Diogo, também não lhe passaria pela cabeça perseguir-te, por seres tão querido dos seus dois filhos. Confessou que todas as ameaças eram apenas para me obrigar a casar com Álvaro.
– Mas afinal, como é que veio parar à Asseiceira? – indagou Diogo. – Fugiu de D. José?
– Não, Diogo. Não fugi de D. José. D. José é que me forçou a partir, tal como já tinha feito com Pedro.
– Por teres recusado casar com Álvaro Dias – concluí.
– Sim, foi isso mesmo.
– Parece que ainda não aprendeu que não pode forçar toda a gente a viver como ele quer.
Depois de confessar que as ameaças nunca tinham sido verdadeiras, disse-me que eu o desonrara, pois ele prometera a minha mão a Álvaro e eu estava a impedi-lo de cumprir a sua palavra. Disse que contigo, apesar de tudo, tinha sido mais fácil. Que a desonra não era tão grande porque, pelo menos, já não viviam sob o mesmo tecto. Disse ainda que não me expulsaria como fizera contigo por considerar que tal seria demasiado cruel para uma rapariga, mas que deixara já de me considerar sua filha. Senti-me profundamente magoada e respondi-lhe que não tencionava continuar a viver com ele. Mais uma vez, a tia Francisca mostrou-se muito generosa e ofereceu-se para me deixar viver com ela até eu me casar com o marido que eu escolhesse, mas nessa altura, o pai também lá estava e o ambiente era demasiado pesado. Além disso, comecei a ver as crueldades protagonizadas pelos realistas, e também dentro de mim nasceu o desejo de ver a vossa causa triunfar. No hospital do Porto, precisavam de gente, e como também estavam a aceitar mulheres, eu ofereci-me como voluntária, embora nessa altura, continuasse em casa da tia. Depois, começaram a surgir os hospitais de campanha e eu fiz parte de vários, sempre na esperança e simultaneamente no terror de vos encontrar.
 
– Terror?
– Poderás calcular quantos homens eu vi morrer nas camas dos hospitais, nestes dois últimos anos? Não sabia o que era pior: não voltar a vê-los ou vê-los morrer nos meus braços.
– É verdade que o vosso hospital foi atacado?
– Sim – respondeu ela, crispando as mãos e apertando os lábios numa expressão de ódio.
 
            Era a primeira vez que via esse tipo de sentimento apoderar-se da minha irmã, e então apercebi-me de que a guerra destruíra também parte da sua inocência.
 
– Cuidamos dos feridos de ambas as partes e até de alguns civis. Há dois dias, de manhã, um grupo de soldados invadiu o convento e começou a matar gente ao acaso. Pareciam loucos... Não creio, sequer, que tivessem recebido ordens dos oficiais. As Irmãs foram poupadas, mas mataram gente que nem sequer se podia mexer. E também morreram algumas das raparigas.
 
            E num soluço desesperado, Luz exclamou, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelas faces:
 
– Eram minhas amigas! Não sabia que doía tanto!
– Pobre Luz – exclamei, abraçando-a. – Como eu te compreendo...
 
            Diogo poisou a sua mão sobre a de Maria da Luz.
 
– Eu sei que isso não apaga a dor, – disse – mas nunca se esqueça que a morte delas foi heróica. Tanto quanto a dos soldados que têm tombado nos campos de batalha ao longo destes últimos anos.
 
            Luz pareceu, finalmente, acalmar-se. Tirou um lenço da algibeira do vestido verde escuro e enxugou as lágrimas.
 
– És uma mulher corajosa, minha irmã – disse-lhe, sem poder deixar de sentir um certo orgulho. – Todas vós o sois.
– Sim, mas depois desse incidente, a maioria das raparigas voltou para casa. As que aqui estão são as que viram os seus lares destruídos pela guerra e aquelas cujas famílias não as querem de volta, como é o meu caso ou o de Eugénia, que viram a falar com o vosso sargento. Casou-se com um liberal contra a vontade da família e no dia seguinte, ele foi assassinado por um bando de absolutistas.
– E mesmo agora que está viúva, a família não a aceita?
– Para a família dela, ela não conta mais do que tu ou eu contamos para D. José Ávila.

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