sábado, 6 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo XI (PROVISÓRIO)

O dia esperado chegou quase um mês após a nossa chegada à ilha. Uma manhã de sexta-feira, estava Diogo já a acabar de se pentear e eu acabara de preparar a água para lavar o rosto quando alguém bateu à porta do nosso quarto. Sem terminar o que estava a fazer, fui abrir. D. Rita encontrava-se à porta com um maço de algumas vinte cartas, das quais tirou as duas primeiras.
 
– Creio que estas cartas são para os senhores.
 
            Sem conseguir articular palavra, peguei nos dois sobrescritos que D. Rita me estendia.
 
– Parece que vão ter a vossa oportunidade mais depressa do que esperavam.
– Obrigado, D. Rita.
 
            E a dona da pensão continuou a sua tarefa de distribuir cartas pelos outros hóspedes.
 
– Isso é o que eu estou a pensar? – indagou Diogo.
 
            Tinha ficado tão emocionado que nem fechara a porta do quarto. A voz de Diogo trouxe-me de volta à realidade.
 
– Parece que sim... pelo selo...
 
            Entreguei a Diogo o envelope com o seu nome e, mal conseguindo dominar o nervosismo o suficiente para articular o movimento dos dedos, abri o que me era destinado. Era a tão esperada convocação para nos juntarmos às tropas do conde. Sabíamos que ele ia recrutar novos soldados, pois sofrera fortes baixas e como sempre, tínhamos a esperança de fazer parte desses homens. Mas quando, finalmente, a convocação chegou, mal conseguimos acreditar. Embora tivéssemos ainda todo o fim-de-semana, fizemos as malas e preparámos tudo para a partida nesse mesmo dia. Quando descemos, pudemos distinguir uma espécie de cumplicidade entre todos os que tinham recebido a chamada. Cumplicidade essa a que nem eu nem Diogo éramos imunes. Naqueles que, mais uma vez, tinham ficado de fora, embora fosse possível notar uma pontinha de inveja, não era suficiente para apagar todo o orgulho e solidariedade que tinham para com aqueles que iam partir.
            Na tarde de domingo, D. Rita ofereceu o almoço a todos os hóspedes. Era assim sempre que, no dia seguinte, partiam homens para a guerra. O carinho demonstrado por todos os que ficavam era tão grande que, apesar da imensa vontade de combater, quase nos fazia lamentar a partida. No entanto, na manhã seguinte, quando os restantes hóspedes dormiam, Diogo e eu pegámos na nossa bagagem e descemos. Junto a D. Rita, encontravam-se já alguns soldados, prontos para partir.
 
– Bom dia – saudei.
– Bom dia – retribuíram os nossos companheiros de armas. – Prontos para a partida?
– Sim, mas primeiro, temos de acertar as contas com a D. Rita.
– Nós já tratámos disso. Alugaram cavalos para a viagem?
– Sim.
– Então, nós esperamos e vamos juntos.
– Óptimo.
 
            Liquidámos as nossas despesas junto de D. Rita e a bondosa senhora assegurou:
 
– Não se preocupem com os quartos. Ninguém os ocupará enquanto estiverem fora. Tratem mas é de voltar sãos e salvos.
– Não se preocupe – aconselhou Diogo. – Nós acabamos com a raça desses realistas antes que eles tenham tempo de apontar contra nós.
 
            Despedimo-nos de D. Rita e juntámo-nos aos nossos companheiros, que já esperavam, cada um na sua montada. Levámos quatro dias e quatro noites de viagem para chegar ao acampamento designado na convocação. Demorámos algum tempo a encontrá-lo, pois embora as instruções fossem rigorosas, o acampamento estava tão bem camuflado que se tornava difícil achá-lo. Finalmente, embrenhados num arvoredo, encontrámos os soldados. Encontravam-se dispersos pelo acampamento; uns, a viver ao ar livre; outros, em abrigos improvisados, feitos dos materiais que a própria natureza fornecia. Também lá se encontravam duas ou três tendas, que calculámos pertencerem a oficiais.
            Eu e os meus companheiros dirigimo-nos a passo para o acampamento, mas imediatamente um tiro de aviso nos fez parar e assustou o cavalo de Diogo, que relinchou e se empinou, mas acabou por se acalmar ao ouvir a voz tranquilizadora de Diogo.
 
– Somos dos vossos! – gritei. – Recebemos ordens para nos juntarmos a esta companhia.
– Não se aproximem sem nova ordem! – berrou a sentinela que nos abordara.
 
            Obedecer pareceu-nos a atitude mais prudente, pelo que esperámos calmamente que o soldado viesse ter connosco. Conforme se aproximava, pareceu ter reparado que de facto usávamos a farda liberal e isso pareceu sossegá-lo, mas ainda assim, indagou:
 
– As vossas convocações?
 
            Todos procurámos nos bolsos e entregámos ao soldado os cinco pedaços de papel.
 
– Está tudo em ordem. Desculpem o acolhimento pouco caloroso, mas todo o cuidado é pouco.
– Nós sabemos – respondeu Diogo. – Espero que todas as sentinelas sejam assim tão zelosas.
– É melhor irem apresentar-se ao capitão. Eu conduzo-os à tenda dele. Esses cavalos são vossos?
– Não, são alugados.
– Vou fazer com que sejam devolvidos aos donos.
– Obrigado.
 
            O soldado fez sinal às outras sentinelas de que já regressaria e conduziu-nos até à tenda onde se encontrava o capitão. Quando entrámos, todos nós ficámos sem fala. O nosso capitão não era senão Rodrigo! Este também não pareceu menos surpreso por nos ver. Deu ordens à sentinela para que voltasse a ocupar o seu posto e em seguida, disse:
 
– Então, vocês fazem parte dos novos reforços?
– Sim, aqui estão as convocações – respondeu Diogo.
 
            Rodrigo nem olhou para os cinco pedaços de papel. Parecia ainda surpreso com o facto de lhe terem enviado como reforços os mesmos soldados que conhecia da pensão da D. Rita.
 
– Bom... – declarou, dirigindo-se a todos, mas em especial a mim, que sempre me mostrara imaturamente impaciente – Já não tardará muito para que tenham a vossa oportunidade de dar o vosso sangue por D. Pedro. Há uma semana fomos atacados por miguelistas e sofremos bastantes baixas. Eles estão a par da nossa vulnerabilidade e provavelmente, não demorarão a aproveitar-se disso para atacar de novo. Só espero que cheguem todos os reforços que eu pedi antes de isso acontecer...
 
            Rodrigo contou-nos ainda alguns pormenores da batalha travada há uma semana e não pude deixar de me sentir egoísta por, no fundo, desejar ter chegado mais cedo para estar na pele desses bravos que tinham perdido a vida pela causa liberal. De seguida, distribuiu os nossos postos e declarou:
 
– Aconselho-os a construir um abrigo, pois as noites são bastante rigorosas. Mas não façam nada que chame a atenção dos realistas.
 
            A nossa vida de soldados proporcionou-nos, por vezes, aventuras a uma só vez perigosas e divertidas mas quase sempre também muito tristes, pois não raramente perdemos amigos em combate. As ordens de ataque – mas principalmente a voz da sentinela anunciando que se aproximavam tropas inimigas – apanhavam-nos na maioria das vezes de surpresa, e o combate, o som infernal dos disparos, a visão dos corpos sem vida de um lado e de outro, e a rapidez com que nos víamos obrigados a raciocinar e a agir para avançarmos contra o inimigo com segurança suficiente para não sermos atingidos, eram física e mentalmente fatigantes. No entanto, a proximidade da morte servia para nos unir, para criar laços tão fortes que todos seríamos capazes de dar as nossas vidas pelas vidas de outros.
            O primeiro combate em que eu, Diogo e os nossos três companheiros de viagem – Tiago, Henrique e Guilherme – participámos, teve lugar apenas três dias após a nossa chegada e embora, pelos motivos expressos por Rodrigo, nós já esperássemos o ataque dos miguelistas, não foi sem algum assombro que os vimos aparecer.
            Aproveitando-se da fraqueza da nossa companhia, o inimigo lançou sobre nós um ataque sem tréguas, que começou pela madrugada e só terminou com a chegada da noite, pois apesar de tudo, a vantagem que os realistas tinham sobre nós não era tão grande que compensasse manter a luta pela noite dentro num local que nós conhecíamos melhor. Assim, após uma luta sangrenta, o inimigo bateu em retirada.
            Enquanto o confronto se desenrolava e nós disparávamos contra o inimigo, Diogo, que juntamente com alguns dos nossos soldados, estava em melhor posição para avançar contra o inimigo do que eu, exclamou:
 
– Vou tentar aproximar-me mais um pouco. Pedro, protege a nossa retaguarda!
 
            Era a primeira vez que Diogo me tratava por tu! Finalmente, deixáramos de ser o nobre e o serviçal, o filho do patrão e o filho da criada. Agora, mais do que amigos, éramos realmente irmãos. Irmãos de armas!
            Logo nessa primeira batalha, perdemos Henrique. Guilherme e Tiago – unidos a Henrique por laços de amizade tão fortes como aqueles que me uniam a Diogo – ficaram terrivelmente abalados, mas para mim, o choque foi demasiado forte para que eu os pudesse consolar.
            Os corpos daqueles que morriam em batalha – se não éramos forçados a abandonar o local para salvar os que restavam – eram enviados para as respectivas famílias; excepto os daqueles que não a tinham ou que tinham por ela sido renegados, como acontecia comigo. Nesse último caso, as últimas homenagens eram prestadas por aqueles que, em vida, lhes haviam sido mais chegados e que se encarregavam de os enterrar. Mas nenhum desses últimos casos se aplicava a Henrique. Tiago, Guilherme, Diogo e eu tratámos de tudo para que a família de Henrique recebesse o corpo do filho e desse um enterro digno a um homem que, na flor da idade, perdera a vida a primeira vez que pisara um campo de batalha em defesa de uma causa tão nobre e justa.
            Depois de tudo encaminhado e depois de termos cumprido o nosso dever ajudando outros soldados na mesma situação, Diogo procurou achar palavras que pudessem, de alguma forma, apaziguar a dor de Guilherme e Tiago, mas eu, incapaz de dominar as minhas próprias emoções, retirei-me para o nosso abrigo feito de troncos e ramos. Ainda hoje não encontro palavras para descrever adequadamente o que eu sentia no final daquele primeiro combate. Todo o dia, os sons tinham ressoado na minha cabeça como trovões. Os corpos sem vida, o sangue, a dor, o sofrimento, faziam-me voltar a experimentar a mesma sensação de náusea que conhecera ao ver o resultado da crueldade dos realistas espalhado pelas ruas, no dia em que Diogo e eu tínhamos sido presos. Quando Henrique foi atingido, Guilherme e Tiago precipitaram-se para o auxiliar. Diogo e eu estávamos demasiado afastados, mas não foi por esse motivo que eu não fiz nada para o socorrer. Quando um homem morre de doença, ou porque o seu tempo neste mundo se esgotou, a sua partida provoca sempre nos que ficam uma profunda tristeza, mas tal é a ordem natural das coisas e, por muito que essa pessoa nos seja querida e nos pareça impossível viver sem ela, acabamos sempre, se não por entender, pelo menos por aceitar. Mas quando um jovem como Henrique, cheio de vida, cheio de esperanças, de projectos, é despojado da sua existência por uma bala assassina, algo neste mundo deve estar muito errado. Não conseguia forçar-me a acreditar que Henrique estava morto. Uma força estranha, quase doentia, oprimia-me o peito e tornava-me incapaz de qualquer movimento. Por alguns segundos, todo o meu corpo e também a minha mente devem ter ficado paralisados, pois recordo-me de despertar de um torpor físico e mental ao ouvir um berro de Diogo:
 
– Atenção, Pedro! Queres ser atingido?
 
            Agora que o combate tinha terminado, tudo o que eu sentia era que não sabia o que sentir. Não sei quanto tempo estive só no nosso abrigo. Podem ter passado minutos, podem ter passado horas antes de Diogo entrar.
 
– Tentei animá-los um pouco, mas acho que preferem estar sozinhos.
 
            Não fui capaz de encontrar nada apropriado para responder. Rangia os dentes de raiva, não tanto contra o inimigo, mas contra a minha própria fraqueza.
 
– Estás bem? – indagou Diogo.
– Podias ter sido... Podia ter sido eu...
 
            Diogo sentou-se no chão de terra que constituía a nossa única mobília.
 
– E um dia, possivelmente, seremos nós. Sabias isso antes de sair do Roseiral.
– Sim, sabia... Não estou arrependido de aqui estar. Não é o medo da morte – da minha morte – que me atormenta. Mas quando penso no que devem estar a sentir Tiago e Guilherme neste momento... Não posso acreditar que podia ser eu a ter perdido um amigo que é para mim como um irmão. Se isso acontecesse, odiar-me-ia para sempre!
– A ti? Porquê?
– Porque fui eu que quis o nosso envolvimento nesta guerra. Provoquei a nossa expulsão do Roseiral ao irritar o meu pai e acabei por precipitar o teu destino juntamente com o meu.
– Não posso acreditar que sintas verdadeiramente o que estás a dizer! Não deves pensar, ainda que por um único segundo, que se não fosses tu, eu não estaria tão envolvido nesta guerra como estou, porque não é verdade. O meu empenho como liberal, devo-o à memória do meu pai e devo-o à minha própria consciência. E julgas que não penso também em todo o sofrimento que a tua morte provocaria, não só a mim, mas a Maria da Luz, à minha mãe e até a D. José Ávila? Não interpretes isto como indício de que a minha amizade é menos sincera do que a tua, mas embora eu sofresse grandemente com a tua perda, estou preparado para a aceitar. E tu também deves estar preparado para aceitar a minha.
 
            Contrariamente ao que Diogo possa ter receado, não vi nas suas palavras uma amizade menor do que aquela que sempre lhe conhecera.
 
– Sei que tens razão, – disse – mas não consigo ser tão nobre como tu.
 
            Um pensamento irónico atravessou a minha mente.
 
– Devias ter sido tu a nascer filho de D. José Ávila. Há mais nobreza na tua alma do que alguma vez haverá no meu sangue.
 
            Diogo ia responder, mas a nossa atenção foi desviada pela entrada do capitão no nosso abrigo. Rodrigo tinha um ferimento de bala num ombro e as suas feições apresentavam-se um pouco mais pálidas do que o habitual, mas apesar disso, o seu estado não parecia inspirar grandes cuidados.
 
– Falei com Guilherme e Tiago – disse. – Sei que nada pode apagar a dor da morte de um amigo, especialmente, quando este pereceu no seu primeiro dia de batalha. Mas lembrem-se de que Henrique, tal como todos os que hoje tombaram pela Carta, morreu um herói.
 
– Nós sabemos – respondeu Diogo.
 
            Rodrigo suspirou com ar abatido e sentou-se.
 
– É grave? – indagou Diogo, fitando o ombro ferido.
– Não, foi só um arranhão. Mas estou exausto. Também eu perdi amigos de longa data.
 
            O ar sereno com que o nosso capitão dissera aquelas palavras causou-me arrepios, mas cedo percebi que não se tratava de insensibilidade. Apenas de uma grande alma militar que aprendera a não deixar que as emoções interferissem com o seu dever.
            Durante os dias que se seguiram, Rodrigo ponderou a hipótese de mudar o local do acampamento, pois a nossa presente situação era conhecida do inimigo e os reforços tardavam em chegar. No entanto, também os realistas tinham sofrido severas baixas e além disso, seria difícil informar da nova localização os soldados que provavelmente vinham a caminho para se juntarem a nós. Com efeito, a decisão de não mudar acabou por se revelar favorável, pois não só não sofremos ataques inimigos durante várias semanas como durante esse tempo, os novos soldados chegaram. Apesar de tudo, Rodrigo não se atrevia sequer a pensar em lançar um ataque sobre os realistas sem antes ter a certeza de que todas as baixas tinham sido repostas. E em menos de cinco semanas, a nossa companhia era de novo invencível. A nossa grande dificuldade, no entanto, não seria derrotar os realistas nas ilhas, pois estes constituíam ainda uma minoria. A nossa tarefa mais árdua consistia em impedir as tentativas de penetração de novas tropas inimigas no único ponto do país ainda não contaminado pelo Absolutismo.
            É forte a tentação de me apresentar, bem como aos meus companheiros de armas, como heróis invencíveis que nunca conheceram uma derrota. Mas a realidade é bem diferente e é essa que, por respeito a todos os que lutaram nesta guerra, devo contar. Lutámos pelo que era certo e justo e vencemos a guerra, mas muitas derrotas nos impediram de esquecer a nossa condição humana. Muitas vezes, éramos forçados a mudar a localização do nosso acampamento, quando sabíamos estar em desvantagem em relação aos realistas e esperávamos um ataque a qualquer momento. Aprendi, como Rodrigo e como Diogo, o controlo dos sentimentos. E pouco depois dos primeiros confrontos, deixei de sentir aquela sensação de náusea que me invadira logo na primeira batalha. Contudo, nunca cheguei a amar verdadeiramente a guerra, como creio ter sido o caso de alguns soldados que de bons militares passaram a cruéis assassinos. Tudo o que eu podia amar – e amava – era a causa, a maior liberdade e justiça que a Carta traria, e em nome de tudo isso, podia sacrificar a minha vida e até as vidas daqueles que constituíssem um obstáculo a esses princípios. Mas nunca fui capaz de gostar de o fazer. Diogo, no entanto, com toda a nobreza de alma que sempre lhe conheci – e que espero, em alguma medida, ter compartilhado – chegava ao ponto de lamentar a sorte daqueles que se via obrigado a matar para salvar a própria vida.

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