sábado, 30 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo IX (PROVISÓRIO)

Diogo e eu permanecemos cerca de seis meses em casa da tia Francisca. Diogo, embora lá estivesse como criado, era tratado com um carinho muito especial pelo simples facto de ser meu amigo. A tia Francisca chegou mesmo a insistir para que ele passasse a frequentar a casa como hóspede, mas o seu orgulho e o seu sentido de lealdade para com os da sua condição impediram-no de aceitar.
            Nos primeiros tempos, sentira necessidade de sair dali, pois apesar da simpatia e da boa vontade da minha tia, eu não deixava de me sentir um intruso. A situação de Diogo não era muito diferente, pois apesar de lá estar como criado, sabia que a tia Francisca tinha pessoal que chegasse e só o aceitara por bondade. Tentou várias vezes encontrar quem o empregasse noutra casa, mas nada conseguiu.
            Além disso, depois de o meu pai e Luz se terem ido embora, tanto eu como Diogo fomos vítimas de várias provocações e mesmo agressões, e nem mesmo a tia Francisca foi poupada, pois uma noite, tentaram incendiar a casa. Felizmente, conseguimos evitar que o fogo se espalhasse antes que vitimasse alguém ou provocasse danos materiais irreparáveis, mas a partir daí, tornou-se óbvio que a nossa presença naquela casa punha em risco a segurança de todos os que lá viviam.
            No dia seguinte, depois de ter discutido o assunto com Diogo, comuniquei à tia Francisca a nossa decisão de partir.
 
– Mas para onde irás? – perguntou ela, preocupada.
– Todos os dias, pessoas na minha situação estão a refugiar-se nos Açores. O Conde de Vila Flor tem conseguido afastar os absolutistas da Ilha Terceira e talvez seja esse o único sítio seguro neste país para um liberal, neste momento.
– Mas não podes partir assim, de repente...
– Só deve haver barco daqui a uma semana, por isso, não será assim tão repentinamente. Além disso, a tia bem viu o que se passou esta noite. Não podemos ficar mais tempo.
– Mas não temos a certeza se foi por vossa causa. Há tanta gente capaz de más acções sem ter motivo...
– Mas a tia sabe que Diogo e eu temos recebido ameaças.
– Está bem. Eu entendo que não possam ficar. Mas é uma tolice partir assim, de repente. Ouve o que eu tenho para te dizer. Estamos no fim de Novembro. Falta menos de um mês para o Natal. Porque não passas cá o Natal e o Ano Novo e viajas depois?
– Quanto mais tempo ficar, mais a tia estará em perigo.
– São só mais umas semanas. Há já tanto tempo que passo os meus Natais sozinha... É claro que tenho os criados. Eles são muito carinhosos comigo, mas não é o mesmo que ter cá família. Por favor, Pedro...
 
            Pude perceber que ela era sincera. Tinha consciência do perigo que representava a minha presença ali, mas estava disposta a arriscar apenas para se sentir um pouco menos só naquele Natal. Confesso que também me assustava passar o Natal numa terra estranha, sem Luz e o meu pai.
            Conversara com Diogo acerca da possibilidade de ir para os Açores e tínhamos decidido que se o fizéssemos, seria para tentar integrar as tropas de Vila Flora, pois era a forma mais ao nosso alcance de ajudar a causa. Se isso acontecesse, só Deus sabia como iria ser o nosso Natal desse ano.
 
– Talvez a tia tenha razão. Vou transmitir a sua proposta a Diogo e se ele concordar, partiremos depois do Ano Novo.
 
            Diogo aceitou o proposto pela minha tia e decidimos a partir a seguir ao Dia de Reis. Escrevemos a Luz e a Cecília, para lhes desejar boas festas e para comunicar a nossa decisão. A resposta chegou uma semana antes do Natal. Além de retribuírem os desejos de um bom Natal, Cecília – e especialmente Luz – apelavam a que não nos precipitássemos, pois embora soubessem que não estávamos seguros naquela casa, também sabiam que íamos para as ilhas para lutar, e temiam ainda mais pela nossa segurança lá.
            Mas o mais surpreendente vinha depois: Luz ia-se casar. Senti-me como que atordoado ao ler a notícia. Maria da Luz ainda não deixara de ser para mim a menina a quem eu puxava as tranças loiras e com quem eu perseguia a bicharada pelos jardins do Roseiral. Mesmo quando pensava na possibilidade de a ver unir-se a Diogo, era uma coisa a longo prazo.
            Luz explicava os pormenores: Álvaro Sousa Dias, filho de um velho amigo da família, pedira-a em casamento, o que desde logo agradara a meu pai. Embora Luz não o dissesse com todas as letras, pude perceber que o meu pai a instigara a aceitar, vendo nisso uma maneira de salvar a sua situação económica, que se deteriorava cada vez mais. Pude também perceber que Luz não o amava, apesar de todas as qualidades que lhe apontava, e que apenas se prontificava a aceitá-lo para agradar a meu pai.
            Senti vontade de viajar imediatamente para o Roseiral e impedi-la de cometer a loucura de entregar toda a sua vida a um homem que não amava para fazer a felicidade de um velho egoísta. Contudo, talvez já prevendo a minha reacção, Luz apelava para que não me afligisse por ela e declarava ter aceitado apenas porque não amava outra pessoa e assim, o sacrifício não seria tão grande. Talvez com o tempo, dizia, acabasse de facto por vir a amá-lo. Mas não foi isso que me fez mudar de ideias em relação a viajar para impedir essa união. O casamento só se deveria realizar dali a dois anos. Álvaro deveria guardar um ano de luto pela morte da sua mãe antes de oficializar o noivado e após isso, por uma exigência hipócrita de meu pai, deveriam deixar passar mais um ano até celebrarem o casamento. Isso fez-me desistir do meu propósito. Parecia-me ridículo tentar impedir uma coisa que, de qualquer forma, só aconteceria dali a dois anos. No fundo, tinha esperança de que durante esse espaço de tempo, Luz acabasse por recusar. Ao ler que Luz se ia casar naquelas circunstâncias, sentira uma profunda revolta, mas foi verdadeira tristeza o que a notícia provocou em Diogo.
            Diogo era demasiado reservado para confessar a sua mágoa, mas não tão frio que pudesse esconder do seu melhor amigo uma dor tão profunda. Creio que até então, Diogo não soubera que amava a minha irmã. Acreditara, de facto, que a estimava da mesma forma que me estimava a mim. A consciência de que ela era para ele algo de proibido nunca o incomodara. Só agora, que ela se dispunha a entregar-se a outro homem, ele confessava a si próprio que a queria para si e que lhe era impossível imaginá-la nos braços de outro.
            Diogo não disse uma palavra após ler a carta, mas tudo isso eu pude ver nos seus olhos. Queria consolá-lo, mas sem lhe dizer que sabia do seu sofrimento, pois sabia como ficava incomodado quando as pessoas percebiam os seus sentimentos.
 
– Tenho a certeza de que ela acaba por mudar de ideias – disse.
– Porque haveria de mudar? Tem quase dezasseis anos. Encontrou um bom partido. Nada mais natural do que casar-se.
 
            Percebi um certo tom de amargura na sua voz, quase como se se quisesse obrigar-se a odiar Luz, para que a sua perda o não pudesse fazer sofrer. Contudo, acabou por confessar:
 
– Sempre soube que Maria da Luz estava fora do meu alcance, mas nunca tinha percebido o quanto isso me doía...
 
            E recompondo-se:
 
– Não me devia deixar falar assim. Quem sou eu para alguma vez sequer...
 
            Diogo não completou a sua frase, mas eu percebi o que ele queria dizer e respondi:
 
– És o único homem que eu tenho a certeza que nunca faria sofrer a minha irmã, mas se ela é demasiado cega para ver isso...
 
            Ficámos em silêncio por momentos. A tia Francisca bateu à porta do quarto, onde eu e Diogo estivéramos a ler a carta.
 
– Então? – indagou. – Há novidades? Estão todos bem, no Roseiral?
– Luz vai-se casar – anunciei, calculando que, para ela, fosse uma notícia feliz.
– Casar-se?! A sério? Meu Deus, até me esqueço que os meus sobrinhos cresceram... Mas porque estão vocês com essas caras? É a melhor notícia que recebo há anos! Quem é o felizardo? Quando é que se casam?
 
            Apesar de tudo, a forma alegre com que a minha tia recebeu a notícia não podia deixar de nos fazer sorrir.
 
– Está aqui a carta – disse-lhe, para evitar ter de contar todos os pormenores. – Pode ler.
 
            E Diogo e eu saímos discretamente do quarto, pois sabíamos como podia ser aborrecido ouvir uma velha viúva dissertar acerca do casamento.
            Até ao Natal, os dias pareciam arrastar-se, apesar da simpatia da tia Francisca. Diogo e eu ansiávamos por ir combater. A vida ociosa que levávamos naquela casa fazia-nos ansiar pelo fim da quadra. No entanto, quando o Natal chegou, tanto eu como o meu amigo nos sentimos felizes por termos ficado. Ao contrário do que se passava no Roseiral, a tia Francisca – provavelmente, porque era mulher sozinha – reunia toda a criadagem à sua mesa e eu realizei assim o velho sonho de ter Diogo à mesma mesa que eu na noite de Natal. Em certas partes da noite, senti-me melancólico. Sentia a falta de Maria da Luz, de Cecília, do padre Ricardo e, embora me esforçasse por me convencer do contrário, sentia a falta do meu pai. Perguntava a mim mesmo se ele sentiria o mesmo, e como seria para ele o primeiro Natal sem mim. Devo confessar o meu egoísmo, pois não pude evitar desejar que ele sentisse o mesmo vazio que eu.
            Na semana de intervalo entre o Natal e o Ano Novo, Diogo e eu dedicámo-nos a fazer preparativos para a nossa partida. Não levaríamos muita coisa. Apenas a roupa que tínhamos trazido do Roseiral e alguns utensílios básicos. Tivemos conhecimento de que iria sair da cidade um barco para os Açores no dia oito de Janeiro e queríamos estar prontos quando a altura chegasse. Assim, essa semana não custou muito a passar, uma vez que estivemos constantemente ocupados. Mas o mesmo não se pode dizer dos dias que se seguiram à chegada de 1829, pois tendo já tudo pronto, a expectativa da viagem apoderou-se de nós da mesma maneira que a expectativa do momento de abrir os presentes quando éramos pequenos. Ainda assim, aproveitámos para escrever para o Roseiral a última carta que enviaríamos do continente.
            Quando o dia, finalmente, chegou, a tia Francisca insistiu em acompanhar-nos até ao porto e assim, seguimos na sua carruagem, conduzida pelo velho Quim, o cocheiro. Antes de embarcar, despedi-me da tia Francisca, que me abraçou com verdadeira emoção e tomou as mãos de Diogo com sincero carinho.
 
– A senhora é muito bondosa – disse-lhe o meu amigo. – Não sei como poderemos agradecer-lhe.
– Não têm nada que me agradecer – respondeu ela. – Vocês foram os filhos que eu nunca tive, durante estes últimos meses. Fizeram-me feliz. Tudo o que vos peço é que sejam felizes também, e que não me esqueçam.
– Nunca a esqueceremos, tia Francisca – assegurei.
– E quando tudo isto terminar, na primeira oportunidade, vimos visitá-la.
– Bom, não se demorem mais – disse ela, procurando disfarçar a emoção – ou ainda perdem o barco.
 
            Depois das últimas despedidas, Diogo e eu pagámos as nossas passagens e subimos a bordo. Do convés, avistámos a tia Francisca, que parecia decidida a não arredar pé dali enquanto o barco não partisse. Não teve de esperar muito, pois pouco após termos subido, o som grave do apito cortou a aurora e o navio começou a mover-se lentamente. Ficámos a acenar para a tia Francisca até esta deixar de estar ao alcance da nossa visão.
            Durante a primeira meia hora de viagem, Diogo e eu ficámos ali, debruçados sobre a amurada do navio, contemplando a imensidão de água que se estendia à nossa frente. Apesar dos meus limitados conhecimentos, parecia-me, pelo aspecto do céu, que o tempo se apresentava favorável à navegação.
 
– Parece-me que o tempo não nos vai pregar partidas – disse para Diogo. – Não achas?
 
            Um senhor de meia-idade que ia a passar na ocasião e ouviu por acaso a nossa conversa, declarou:
 
– Hoje em dia, as tempestades não passam de um perigo secundário. O que eu receio verdadeiramente é que o barco seja atacado.
– Porque haveriam de atacar um barco de passageiros?
– Então não sabem que estas embarcações vão cheias de fugitivos políticos? Desde que os homens que vinham no Belfast foram derrotados, ainda não deixaram de chegar liberais às ilhas... Esses agitadores!
 
            Diogo e eu entreolhámo-nos. O facto de aquele homem se ter dirigido a nós daquela forma alertou-nos para a imprudência que seria revelar as nossas identidades a bordo do navio.
 
– E os barcos são atacados por causa da presença de liberais? – indagou Diogo.
– Nem mais! – respondeu o homem, parecendo deveras irritado. – Os bons portugueses, fiéis a D. Miguel, querem – e com muita razão, se querem saber a minha opinião – apanhar os malfeitores, para lhes darem o castigo que merecem antes que eles cheguem à Terceira. Uma vez lá chegados, já ninguém os apanha, pois o Conde de Vila Flor tem aquilo tudo patrulhado!
 
            Já irritado, ripostei, com alguma imprudência:
 
– Está a dizer-nos que os absolutistas atacam navios de passageiros sem ter em conta as pessoas que estão inocentes?
– Ora, fala como se os homens de Sua Majestade fossem criminosos! Não vê que não há outra maneira?
 
            Ainda não tinha aprendido que a prudência era, em certas ocasiões, melhor política do que uma sinceridade que podia ser tomada por ousadia, e não tinha aprendido também que, por vezes, é melhor não mostrar tudo o que sentimos. As palavras do homem enraiveceram-me. Senti o sangue aflorar-me às faces e tive vontade de lhe gritar que D. Miguel não passava de um traidor forçado ao exílio pela sua própria família e que só reconhecia o título de Majestade a D. Pedro, que como filho mais velho de D. João VI era o herdeiro legítimo. Ter-lhe-ia, com certeza, dito isso tudo se não sentisse Diogo agarrar-me o braço com firmeza enquanto dizia para o homem:
 
– Não ligue ao meu amigo. Ficou nervoso quando o senhor referiu que podíamos ser atacados. Afinal, a presença desses liberais põe-nos a todos em perigo.
– Por instantes, cheguei a pensar que também o fossem...
 
            E o homem afastou-se, ainda desconfiado. Com um safanão, libertei-me da mão de Diogo.
 
– Porque diabo falaste dos liberais como se fossem eles o inimigo? Não tenho medo de um velho absolutista!
– Mas porque há-de ser sempre tão nervoso? Esta viagem pode demorar mais de uma semana. Quer ter de passar cada dia com receio de ser assassinado? Tenho ouvido dizer que isso é comum nestas viagens.
– Já te disse que não tenho medo.
 
            Diogo agarrou-me pelos braços como um irmão mais velho e disse com gravidade:
 
– Pedro, não se trata de medir a coragem de cada um! Isto agora é a sério! Se quer estar preparado para vencer os absolutistas, não basta pegar numa arma e exterminá-los. Antes de mais, se quiser sobreviver nesta guerra, aprenda a mover-se no meio deles sem se fazer notar.
– Mas isso é uma cobardia! – respondi, incapaz de aceitar que nem sempre as coisas são tão lineares quanto as idealizamos.
– Oiça, Pedro. Se aquele velho descobre quem somos – o que somos – ficamos em perigo. Disse-me que não tinha medo. Pois bem, que pretende fazer? Matar um homem que tem idade para ser seu avô? Não é mais ético do que tentar passar despercebido...
 
            Percebia finalmente onde Diogo queria chegar. Nem sempre era simples decidir qual a decisão mais correcta, e nem sempre a que se nos afigurava mais nobre era, de facto, a mais justa.
 
– Não tinha pensado nas coisas dessa maneira...
 
            Durante alguns momentos, ficámos ambos em silêncio. Depois, olhando em redor, Diogo reflectiu, em voz alta:
 
– Já pensou que os homens a bordo deste navio são, em grande parte, fugitivos como nós?
 
            Olhei também à minha volta. Embora a maior parte dos passageiros se encontrasse na coberta inferior, ainda havia bastantes homens no convés. Observei-os com uma certa curiosidade, tentando ler no semblante de cada um quais ali estariam pela mesma razão que eu.
            Os primeiros quatro dias de viagem foram vividos sob permanente tensão, devido ao receio dos ataques miguelistas, mas passado esse tempo, tanto a tripulação como os passageiros que já haviam efectuado aquela viagem mais do que uma vez – e que sabiam como as coisas costumavam passar-se – pareceram ficar mais tranquilos, pelo que eu e Diogo nos sentimos também mais aliviados.
            O barco era relativamente grande e passavam-se dias e dias sem que víssemos este ou aquele passageiro. Talvez por isso só no terceiro dia de viagem reparámos que a bordo se encontrava um dos rapazes que estivera detido connosco no dia em que fôramos presos por ajudar um liberal ferido. Diogo e eu pensámos em dar-nos a conhecer, mas o receio fez-nos guardar silêncio. No entanto, o nosso companheiro de viagem também nos reconhecera e foi ele quem nos abordou, uma manhã, quando tomávamos o chá deslavado que serviam como pequeno-almoço, sentados a uma das mesas do convés.
            Rodrigo – era esse o seu nome – sentou-se à nossa mesa como que por acaso e disse, em tom de confidência:
 
– Suponho que estejamos aqui pelos mesmos motivos...
– Não pensei que nos reconhecesse – declarou Diogo.
 
            Rodrigo sorriu. Havia uma certa malícia no seu olhar, que não lhe vinha de uma personalidade nefasta, mas apenas da vida de fugitivo a que o destino o votara.
 
– Nos últimos meses, tenho vivido com um animal selvagem. Os meus olhos nunca me enganam e a memória nunca me trai. Vi-os embarcar e reconheci-os imediatamente.
– Porque não nos falou?
– Não era prudente. Há gente a bordo deste navio que está do lado do inimigo e sabe quem eu sou. Se percebessem que nos conhecíamos antes desta viagem, facilmente concluiriam que também são liberais. Se nos virem juntos agora, pensarão que só nos conhecemos a bordo do Esperança e estamos apenas a tagarelar. Ou pelo menos, ficarão na dúvida.
– Essas pessoas que o conhecem... – indaguei. – Porque não o prendem?
 
            Rodrigo voltou a sorrir. O seu olhar revelava um misto de malícia, ternura e amargura.
 
– Porque pensam que os posso conduzir a um número muito maior dos nossos homens.
– E pode?
– Sim, posso. Mas tal não acontecerá! Ainda que me torturem, ainda que me matem, de mim não arrancarão uma palavra!
 
            Pelo que ele dizia, Diogo e eu concluímos que Rodrigo deveria comandar um grupo de liberais, mas antes que pudéssemos fazer mais perguntas, o nosso novo companheiro virou-se para mim e declarou:
 
– Não esperava encontrá-lo aqui, depois daquele incidente na esquadra. Julguei que o seu pai...
– Julgou o mesmo que aquele rapaz, que me acusava de falso heroísmo – concluí. – Que na hora da verdade, eu me agarrava à nobreza de um título. Bem, como vê, estava enganado.
– Suponho que não lhe posso censurar a ironia... Mas entenda que para quem está habituado a ser espezinhado por homens como o seu pai...
 
            Envolveu-me uma sensação estranha. Ninguém, mais do que eu, conhecia e apontava os defeitos do meu pai, mas era a primeira vez que ouvia outra pessoa referir-se a ele naquele tom. E de certa forma, isso fez-me sentir desconfortável.
 
– Peço desculpa – disse Rodrigo. – Não quis ofendê-lo.
– Não tem importância – respondi, tentando convencer-me a mim próprio de que aquilo que dizia era verdade. – O meu pai não teve o mínimo de respeito por aquilo em que eu acreditava ou por aquilo que eu sentia quando me expulsou de casa e se sentiu no direito de me proibir de ver a minha própria irmã. Ninguém sabe reconhecer melhor os seus defeitos do que eu.
 
            Diogo deve ter percebido que aquele assunto me estava a deixar pouco à vontade, pois mudou o tema da conversa:
 
– Diga-nos, Rodrigo: quais são os seus planos depois de desembarcar?
– Isso, sabê-lo-ão na altura certa – respondeu ele, com um ar algo misterioso.
 
            Durante os dias que se seguiram, Rodrigo, bastante mais experiente do que nós naquela vida de foragido, foi-nos apresentando companheiros seus, homens que ele sabia serem de confiança; alguns, de valor incalculável para a causa. Em pouco tempo, ficámos a saber exactamente quem a bordo daquele navio era liberal e quem era absolutista; quais aqueles a quem nos convinha ser agradáveis e quais aqueles de que era melhor guardar distância; quais os liberais que a cobardia poderia tornar miguelistas e quais os miguelistas que poderíamos, sem perigo, tentar atrair para o nosso lado, ficando assim a conhecer os seus segredos. Quanto mais unidos estávamos, mais invencíveis nos sentíamos. Embora fôssemos, apesar de tudo, uma minoria entre os passageiros do Esperança, já não receávamos um ataque inimigo. Sentíamos que podíamos vencer o mundo.

Sem comentários:

Enviar um comentário