sexta-feira, 15 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo III - (PROVISÓRIO)


O Natal era a festa preferida de todos nós, no Roseiral. Não só das crianças, mas também do meu pai, da boa Cecília e principalmente, do padre Ricardo, que sempre passava a Consoada connosco.

Mas naquele ano de 1821, o ambiente era um pouco tenso. D. João VI regressara. O meu pai já não se mostrava tão confiante de que Sua Majestade não viesse a trazer de vez o liberalismo ao país e uma mão-cheia de outros acontecimentos, mais ou menos importantes, pareciam indicar que os liberais estavam decididos a vencer, custasse o que custasse.

Ainda assim, tentávamos divertir-nos o mais possível. Faltavam algumas semanas para o Natal e eu, Luz e Diogo aguardávamos que o meu pai regressasse com Joaquim, o nosso actual caseiro, e com um pinheiro que daria ao solar um toque natalício. Regressaram cerca de hora e meia após terem saído, trazendo um enorme pinheiro-manso que foi colocado na sala.



– Meninos... – disse o meu pai, sorrindo, depois de ter colocado o pinheiro num vaso suficientemente grande e cheio de terra. – A Cecília tem muito que fazer na cozinha. É convosco a tarefa de enfeitar a árvore.
– O Diogo pode ajudar? – perguntei, ansioso.
– Pode.


Sem escutar já os conselhos de meu pai, que nos recomendava que tivéssemos cuidado ao subir aos bancos para enfeitar as partes mais altas, corremos em busca dos enfeites. Demorámos quase uma hora até nos sentirmos satisfeitos com o nosso trabalho, mas por fim, lá conseguimos fazer a árvore ficar bonita. Maria da Luz era quem mais se deleitava a admirar a nossa própria obra-prima.



– Achas que o Pai Natal vai gostar, Pedro?
– Claro que sim – respondi, satisfeito. – Acho que este ano vamos receber muitos presentes.
– Eu pedi uma boneca nova, de porcelana.
– Eu pedi umas botas de montar iguais às do pai. E tu, Diogo?
– Bem, pedi um fato quente para poder andar na neve.
– Mas quase nunca neva... – objectou Luz.
– Pois não, mas eu também pedi a neve. E sobretudo, pedi que não houvesse guerra por causa dos liberais.
– Porque achas que pode haver guerra? – indagou a minha irmã.
– Ouvi o vosso pai falar com D. Brito. Diziam que os liberais ainda acabavam por conduzir Portugal a uma guerra.
– Ora! – exclamei. – Isso é uma ideia maluca. O meu pai é capaz de dizer tudo e mais alguma coisa sobre os liberais.
– Talvez tenha razão.
– Claro que tenho razão.
– Estava a falar do seu pai...
– Ora, vamos mas é brincar!
– A quê? – indagou Luz, com um ar desolado. – A Cecília não nos deixa ir brincar lá para fora com este frio e dentro de casa não há nada para fazer.


Felizmente, o padre Ricardo apareceu para nos salvar do tédio. O padre Ricardo era uma boa alma, apesar das suas ideias contra o liberalismo. Gostava de paz e harmonia e temia que os liberais pusessem fim a uma estabilidade já de si duvidosa. Frequentava o Roseiral desde o tempo do meu avô Eduardo, pai do meu pai, e era já como se fosse da família. Tinha agora cerca de 74 ou 75 anos e se sempre gostara de crianças, quanto mais avançada ia a sua idade, mais condescendência parecia ter para com elas. Para nós, as suas histórias – que ele ia buscar à Bíblia e que contava com uma simplicidade tão grande que até para nós, crianças, eram fáceis de entender – eram sempre um momento de deleite.

Quando a campainha tocou, Cecília foi abrir a porta e nós ficámos a escutar, para ver quem chegava.



– Olá, Cecília – disse a voz bondosa do padre. – Deus esteja nesta casa.
– Está com certeza, padre – respondeu Cecília. – D. José é que não está, se é dele que vem à procura. Mas não deve demorar. Se quiser esperar na sala... As crianças estão fartas de perguntar pelo senhor. Vá andando que eu já lhe sirvo um chá.
– Ora ainda bem que as crianças cá estão. Tenho uma surpresa para elas.


Quando o padre Ricardo entrou na sala, deparou-se com três crianças curiosas, que o fitavam tentando descobrir o que seria a surpresa.



– Ouviram tudo, não foi, seus malandrinhos? Bom, aqui está.


E estendeu-nos uma flanela vermelha, onde vinham embrulhadas algumas figuras religiosas feitas de barro.



– Que bom! – exclamou Luz. – Agora, podemos fazer um presépio!
– Sim! – concordámos, em uníssono.
– Eu dou uma ajuda – declarou o padre. – Tende cuidado para não partir nada.


Pusemos os quatro mãos à obra até estar tudo perfeito. E embora nenhum de nós ousasse confessá-lo diante do padre Ricardo, pensávamos os três que agora era ainda maior a probabilidade de o Pai Natal nos trazer os tão desejados presentes. Quando o meu pai chegou, mostrou-se satisfeito com a presença do padre.



– Ah! Padre Ricardo, é um prazer tê-lo aqui, no Roseiral. Deixe-se estar, não se levante. A sua bênção.
– Deus o abençoe. Espero que não me leve a mal não os visitar há tanto tempo, mas estamos quase no Natal e há muitos preparativos para fazer. De resto, temo-nos visto na igreja... embora não com a frequência que seria conveniente.


Calculo que o meu pai tenha percebido a crítica implícita à sua ausência na casa de Deus, mas optou por não aprofundar o assunto.



– Bom, o que interessa é que cá está! E vejo que trouxe um presente para as crianças.
– Um presente para o Roseiral – corrigiu o padre. – Para que Deus possa estar sempre nos vossos corações. Principalmente agora, que faltam cinco dias para o Natal.
– É verdade. Mais uma comemoração do nascimento de Jesus.
– Sim, é gratificante. Especialmente, quando se pode comemorar junto de uma família como a vossa.
– Muito me agrada que assim pense, padre.
– Mas diga-me: que tal vão as crianças?


Diogo, Luz e eu continuávamos de volta da árvore de Natal e do presépio, pelo que os dois falavam como se nós ali não estivéssemos e quanto a nós, ouvíamos o que diziam como se se tratasse de duas vozes muito ao longe.



– Vão bem – respondeu o meu pai. – Pedro é um pouco travesso. Creio que é natural, na idade dele.
– E as orações?
– Maria da Luz é a mais religiosa. Diz-me Cecília que reza todas as noites. Pedro, por vezes, esquiva-se, mas não faz por mal.
– Claro que não, é apenas uma criança. Deus sabe que não é por mal.


O meu pai olhava agora para nós e o padre reparou que ele parecia ligeiramente contrariado.



– O que se passa?
– Nada... É aquele miúdo, o filho da Cecília.
– Parece-me bom rapazito.


O meu pai baixara a voz, o que me fez perceber que a conversa nos devia dizer respeito, por isso, tentei tomar atenção ao que diziam.



– Talvez seja, mas não podemos esquecer que é um criado. Não devia ter permitido que se tornasse amigo dos meus filhos.
– Não há mal nenhum nisso. São crianças.
– Mas estão a crescer. E não fica bem o meu filho tratar o seu moço de estrebaria como um irmão. Ou, mais grave ainda, não fica bem o moço de estrebaria tratar o meu filho como um irmão, não concorda?
– Bem, concordo que deve existir respeito, mas...
– Ora, padre Ricardo! Deixemo-nos de rodeios! Até o Paraíso tem uma hierarquia. Deus, Jesus e depois a Sua Mãe, os anjos, os santos...


O padre Ricardo enxugou o suor da testa. Parecia recear que Deus pudesse interpretar aquilo como blasfémia.



– Que acha que devo fazer para os afastar?


A minha atenção começava a desprender-se da árvore de Natal e das figuras do presépio para se concentrar nas palavras do meu pai e do padre Ricardo. A atitude do meu pai assustava-me. Não queria perder a amizade de Diogo.



– Oiça – aconselhou o padre. – Não interfira. São crianças e dou-lhe a minha palavra que a amizade delas é abençoada por Deus. Não se preocupe. Conforme Diogo for crescendo e lhe forem atribuídas novas tarefas, acabará por se afastar gradualmente dos seus filhos, tal como se aproximou.


Assustado, olhei para Diogo. Por nada deste mundo quereria perder a sua amizade e tanto as palavras do meu pai como as do padre Ricardo me pareciam perversas. Diogo deve ter notado algo de estranho na minha fisionomia quando o fitei, pois indagou:



– Que se passa? Não se sente bem?


Estive quase a ameaçá-lo novamente por causa da distância que colocava entre nós com aquele tratamento de “senhor”, próprio para adultos emproados e não para duas crianças. Mas acabei por concluir que aquilo que o meu pai e o padre Ricardo esperavam que acontecesse, não tinha forçosamente de acontecer.



– Não se passa nada, Diogo.





























































































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