sábado, 24 de agosto de 2013

O CAVALO-MARINHO DO LAGO


Aqui fica mais um pequeno passo, espero eu, rumo à aproximação do género que muito gostaria de vir a constatar ser o meu: o conto. E dentro do conto, uma das variantes que mais me atrai, a chamada ghost story.
Espero que gostem.

Here’s another small step, hopefully, towards a genre that I would very much like to ascertain as my own: the short story. And within the short story, one of the variations that most appeals to me: the ghost story.
Hope you like it. (Version in English coming soon)

Se o mar falasse, teria muitas histórias para contar. Os pescadores que partem para ganhar o pão de cada dia e nunca mais voltam, os veraneantes que se aventuram e desaparecem sem deixar rasto, as vítimas dos cruzeiros que se afundam, os infelizes que procuram o suicídio nas águas. Os corpos que são engolidos, tragados para satisfazer a sua voracidade, não descansam nunca, sacudidos pelas ondas, arrastados pelas correntes até ficarem encalhados em algum lugar onde a água atrasa a decomposição dos tecidos e o desaparecimento da matéria. Corpos de gente a quem a família não chega a prestar uma última homenagem e que nunca encontra uma última morada. Almas condenadas a vagar por todo o sempre por não encontrarem o descanso eterno.

            Paula entrou no quarto secando energicamente o cabelo com a toalha das mãos. Manuel já estava acordado e a persiana levantada, mas estivera à espera de que ela saísse do duche, por isso, ainda estava na cama, a ler o jornal. Quando ele se levantou, Paula lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o. Um beijo que foi crescendo, crescendo, até que já não era um beijo e sim dois corpos à procura um do outro. Manuel gostava daquela avidez com que ela o desejava, daquela urgência, como se fosse explodir se não o tivesse naquele momento. Isso fazia com que o seu próprio desejo despertasse mais intenso e ambos se possuíam sofregamente até à exaustão.

– Bolas – disse Paula, com um amuo fingido. – Vês o que fizeste? Estou toda suada. Agora, tenho de tomar duche outra vez.

Manuel puxou-a pela mão para o duche. Quando saíram, pensaram que talvez já não fossem a tempo do pequeno-almoço. No entanto, entraram na sala a tempo de pedirem à senhora que levantava as mesas que esperasse mais cinco minutos. A senhora aquiesceu, embora Paula julgasse ter notado um olhar de censura contra os hóspedes que não cumpriam os horários.

– Qual é o programa para hoje? – perguntou.
– Há um barco que leva turistas até à Gruta do Naufrágio. – E como que para responder ao olhar interrogativo de Paula: – Há coisa de sete ou oito anos, afundou-se um navio de passageiros ao largo da gruta. A zona é muito rochosa e morreu muita gente atirada pelas ondas de encontro às rochas. Os coletes de salvação não valeram de muito. De setecentas pessoas, salvaram-se duzentas e poucas. Muitos dos corpos nunca foram encontrados. – E com um sorriso cúmplice, acrescentou: – Dizem que a gruta é assombrada pelos espíritos dessas pessoas.
– Parvo – retorquiu Paula, sentindo um arrepio. – Sabes que não gosto que brinques com essas coisas.
– Desculpa, não resisti. De qualquer maneira, não inventei nada. São as pessoas de cá que o dizem. E tu já estás crescidinha para acreditares em fantasmas.
– E não acredito. Mas pelo sim, pelo não... De qualquer maneira, prefiro fazer outra coisa. Vamos experimentar o parque aquático.

Manuel não tinha a menor vontade de se atirar de uma prancha de dois metros de altura, nem de se lançar num escorrega até atingir sabe-se lá quantos quilómetros/hora para depois ser cuspido para a água. E tirando isso, o parque era apenas um conjunto de piscinas iguais a tantas outras.

– Isso é para miúdos – argumentou. – Vamos fazer o seguinte: atiramos moeda ao ar. Se tu ganhares, vamos ao parque. Se eu ganhar...
– Vamos à gruta. Caras.

Manuel remexeu no bolso das calças à procura de uma moeda. Fê-la dar uma reviravolta no ar e aterrar nas costas da mão. Paula fez um sorriso triunfante. Ali estava a face da moeda de cinquenta cêntimos.
            À porta do parque aquático, em vez da recepcionista que esperavam, Paula e Manuel encontraram um segurança que os impediu de entrar.

– O parque está fechado – disse.
– Mas... hoje é sábado, não é? O parque está aberto de terça a domingo, das 8h às 20h. É o que diz no horário. – E apontou para o quadrado de papel afixado à entrada.
– Houve um problema com o cloro. O rapaz que faz a manutenção enganou-se e deitou cloro a mais. A administração está a resolver o problema mas ainda não sabem a que horas vão poder abrir.

Um pouco desanimados, Paula e Manuel afastaram-se. Não valia a pena esperar sem saber a que horas poderiam entrar.

– Será que ainda dá tempo para apanhar o barco? – perguntou Paula.
– Tens a certeza de que queres ir?
– Porque não? – respondeu ela, encolhendo os ombros. Manuel tinha razão. Não fazia sentido ser supersticiosa.

O último barco da manhã saía às onze e meia. Manuel olhou para o relógio: onze e dez. O cais de embarque ficava a vinte minutos. Era à conta, mas se estugassem o passo, talvez lá chegassem em quinze minutos e ficariam com cinco para comprar os bilhetes, que eram vendidos no local.
Quando finalmente se sentaram no barco, com os bilhetes na mão, precisaram de algum tempo para que a respiração voltasse a ser regular. Agora que ali estavam, Paula estava contente por o parque estar fechado. Isto era muito melhor. Sentados no convés, a brisa marinha a afagar-lhes o rosto, o cheiro a maresia...
O barco seguia a uma velocidade constante. Paula pensou que era curioso que os barcos e aviões dessem sempre a sensação de andar mais devagar do que realmente andavam. Ou talvez fosse ela a única a sentir essa impressão.
Ancoraram a alguma distância da gruta, numa praia onde seria impossível chegar a pé, a não ser, talvez, para os alpinistas, que não temeriam os rochedos mortíferos e ameaçadores que a ladeavam.
O guia explicava que muita gente se aventurava a vir a nado, partindo da praia vizinha, e embora normalmente esses indivíduos conseguissem regressar, era elevada a percentagem de pessoas que, apanhadas por tempestades repentinas, acabavam por morrer pelo caminho, atiradas de encontro às rochas. Isso, para não falar naqueles que se distraíam com os horários das marés e, a menos que soubessem nadar muito bem, tinham de procurar um rochedo elevado e esperar, por vezes até ao dia seguinte, para poderem regressar.

– E agora, a história por que todos esperam – disse o guia.

            E contou como, em 1998, um paquete regressado da Islândia fora desviado por uma tempestade quando pretendia alcançar o porto. A ventania arremessara-o de encontro às rochas e ele acabara por ficar tão danificado que se afundara. Muitos dos botes salva-vidas tiveram a mesma sorte. Foram poucos os que tiveram a sorte de se conseguir manter vivos tempo suficiente para resistir à tempestade e esperar por socorro.

– Dizem – continuou o guia, depois de ter contado o que se passara – que de vez em quando, nas grutas, se ouvem lamentos inexplicáveis. E também já houve quem dissesse ter ouvido uma voz feminina cantarolar baixinho. Claro que os cépticos e os mais inclinados a explicações racionais dizem que devem ser efeitos sonoros provocados pelo vento.

E com um sorriso maroto, acrescentou:

– Mas claro que a nossa povoação sabe a verdade. Que esses lamentos e essa melodia pertencem à alma de alguém que morreu no naufrágio. Aliás, quem já ouviu diz que se trata de uma voz jovem, provavelmente, de alguém que morreu antes do tempo e talvez tenha deixado algo por fazer neste mundo.

            O guia terminou a exposição e correu os olhos pela assistência, como que para avaliar o efeito das suas palavras nos ouvintes. Parecia satisfeito.
            Por um momento, todos ficaram em silêncio, como se receassem quebrar a espécie de encanto que os envolvia. Até que alguém riu nervosamente, e como que para sacudir aquela sensação estranha, disse:

– Suponho que agora, nos vai apresentar o fantasma...

Todos riram, gratos por o comentário os ter chamado de novo à realidade.

– Riam, riam – respondeu o guia. Mas ele próprio parecia divertido e não tinha ar de quem acreditava em histórias daquela natureza. – Depois não se queixem se o fantasma vos vier puxar um pé...

      Seguiu-se uma visita às grutas. O guia preveniu que as galerias eram labirínticas e alertou para que não se afastassem; caso contrário, poderiam perder-se.
            Paula e Manuel foram os últimos a entrar. Sabiam que quem seguia atrás tinha sempre mais tempo para apreciar o que havia para ver.
            Lá dentro, estava fresco e ouvia-se o som reconfortante da água. Os visitantes maravilharam-se com as formações rochosas naturais, algumas das quais pareciam mesmo ter sido esculpidas por mão humana.
            Paula pensou que as grutas eram realmente labirínticas, tantas eram as ramificações das galerias. Depois de ter andado dez minutos, se não fosse o guia, já não saberia como sair. Era ligeiramente claustrofóbica e quando Manuel resolvia ficar um pouco para trás para apreciar melhor qualquer coisa que lhe tinha despertado o interesse, sentia-se tomada de algum pânico.

– Vamos, senão, ainda nos perdemos – dizia.
– Calma. Não vão assim tão à frente.

            Mas depois de ter insistido com ele algumas vezes, disse, exasperada:

– Como queiras. Se te queres perder, o problema é teu. Eu vou com o grupo.

            Manuel tinha ficado para trás para melhor observar uma galeria coberta de pedras que pareciam preciosas, dadas as cores e o brilho. Ignorou o comentário de Paula. Certamente, o grupo não se afastaria tanto em tão pouco tempo e poderia segui-lo pelas vozes. Quando, finalmente, se sentiu satisfeito e se preparava para seguir os outros, ouviu alguém rir. Parou instintivamente e olhou em volta, para ver se mais alguém ficara para trás. Não havia mais ninguém na galeria. Apercebeu-se de que, sem querer, se demorara mais do que pretendia e começou a temer ter-se perdido. Tentou ouvir as vozes dos outros, mas o silêncio era total.

– Paula! – chamou. 

Apenas lhe respondeu o eco da sua própria voz. Sentiu o coração descompassado e as pernas a tremer. Reparou que a respiração estava bastante acelerada. Pensamentos assustadores percorreram-lhe o espírito: «E se eu não consigo sair daqui?».
            Correu para a galeria seguinte, onde também não estava ninguém. E onde reinava o mesmo silêncio sepulcral. Como seria possível que tivessem desaparecido todos sem deixar rasto? Como poderiam ter-se afastado tanto que não se ouviam, nem sequer ao longe? Era como se ele fosse a única pessoa lá dentro. Quando olhou em volta, sentiu verdadeiro pânico. A galeria era enorme, com um lago no meio, e tinha aberturas que davam para mais cinco galerias. Como poderia saber por qual deveria seguir?

– Paula! – voltou a chamar, mas o eco repetia as suas palavras como se zombasse dele: «Paula, Paula, Paula...». – Ei! Alguém me ouve? Onde é que estão todos?

            Olhou em volta, à procura de alguma pista que lhe permitisse deduzir que caminho tinham tomado. Se alguém tivesse deixado cair uma moeda, um lenço de papel, qualquer coisa... Nada.
Teve a sensação de que enquanto não conseguisse abrandar o ritmo cardíaco e respiratório, não conseguiria pensar com clareza, por isso, sentou-se, fechou os olhos, respirou fundo e tentou perceber o que seria melhor: continuar às cegas, sem saber por onde ia, na esperança de encontrar uma saída? Ou esperar que alguém desse pela sua falta e voltasse, à sua procura? Certamente, Paula já deveria ter reparado na sua ausência, ela que tanto medo tinha dos caminhos sinuosos da gruta. Talvez, nesse momento, já o guia viesse a caminho.
            Foi então que voltou a ouvi-la. A risadinha. Desta vez, talvez por já se encontrar num estado de nervos alterado, arrepiou-se. Pôs-se em pé de um salto e berrou, como que para espantar o próprio medo:

 – Quem está aí?

            Desta vez, além do eco, também o riso se fez ouvir de novo. Era um riso cristalino, simultaneamente inocente e atrevido, como o de uma adolescente. Contra a sua própria vontade, deu por si a pensar na história do fantasma.

– Não tem piada nenhuma! – vociferou.

            Devia ser uma partida, concluiu. Talvez Paula os tivesse convencido a pregarem-lhe um susto, para ver se ele deixava de ficar para trás. Mas, nesse momento, ouviu um som vindo da água, como se alguém tivesse atirado uma pedra ou uma moeda para dentro do lago. Mas não estava lá ninguém além dele. Aproximou-se a tempo de ver os círculos na água. Tentou descortinar o que havia no fundo do lago. Não era fundo, mas embora a água fosse límpida, a escassa claridade da gruta fazia com que parecesse negra.
            Uma sensação de humidade debaixo dos pés distraiu o seu olhar da água por um momento. Olhou para baixo e reparou em vários fios de água que corriam velozes de diferentes pontos da galeria, convergindo para o centro. Era evidente que, além de ter aquele lago permanente, a gruta se enchia de água conforme as marés. Novamente tomado de pânico, tentou identificar na parede alguma marca que lhe permitisse saber até que altura a água costumava subir. O que descobriu não foi animador. A marca da água encontrava-se, sensivelmente, um metro acima da sua cabeça.
            Não podia esperar que o viessem buscar. Talvez nem viessem, se isso significasse ter de entrar na gruta quando a maré estivesse a encher e colocar em risco a vida de outras pessoas. Paula tinha razão; ninguém o mandara ficar para trás. Agora, se queria salvar-se, tinha de se desenrascar sozinho. Resolveu espreitar as cinco saídas da galeria. Mas quando se aproximou da primeira, voltou a ouvir a agitação na água do lago. Encolerizado, correu para lá, como se lá quisesse chegar antes que a causa dessa agitação fugisse. Mas ficou gelado ao ter a sensação de ter visto um rosto jovem e feminino, com um sorriso trocista, desvanecer-se com a ondulação. Furioso, fechou os olhos para ganhar coragem e, de punho cerrado, enfiou a mão na água. Chegou a ter medo de que ao retirar o braço, viesse agarrado a ele alguma espécie de monstro marinho, uma serpente... «Estou a ficar louco». Voltou a enfiar a mão no lago, desta vez, com mais calma, tacteando o fundo, à procura do que pudesse ter caído lá dentro. Sentiu vários objectos, redondos, de vários tamanhos, mas todos pequenos. Eram moedas. Sabia que as pessoas costumavam atirar moedas para os lagos dentro das grutas, pedindo desejos. Ele próprio já o fizera. Mas depois, tocou num objecto um pouco mais grosso, de feitio irregular. Embora em contacto com a água fosse difícil saber ao certo, o toque pareceu-lhe vítreo. Retirou-o e observou-o. Era uma pedra azul clara, translúcida, em forma de cavalo-marinho. Possivelmente, um pendente. Na parte da cabeça, tinha um pequeno encaixe, redondo, que devia ter contido outrora o olho do animal, mas que agora estava vazio. Não era entendido em joalharia mas pela forma como rebrilhava, mesmo na claridade reduzida da gruta, percebeu que devia ser verdadeira. Uma safira, talvez. As safiras costumavam ser azuis escuras mas sabia que também as havia bastante claras. Por momentos, pensou se não deveria deixá-la onde estava. Talvez alguém a tivesse deitado lá para dentro, na fé de que lhe fosse concedido algum desejo especial. Por outro lado, se era uma pedra verdadeira, era mais provável que a tivessem perdido. E depois? Se calhar, já se tinham passado anos e nunca iria encontrar a dona do pendente. Não queria ficar com ele. A não ser para o devolver, no caso de ter sido mesmo perdido. Continuava a pensar para consigo: «O melhor é não me meter e deixá-lo onde está», mas parecia que uma força o impedia. Meteu-o no bolso, dizendo a si mesmo que se o guia não conseguisse localizar a pessoa a quem ele pertencia, ou se esta dissesse que o deitara à água de propósito, ele mesmo se encarregaria de voltar e de o devolver ao lago.
            Sentiu um arrepio. Assustado, reparou que a água lhe dava já pelas canelas. «Tenho de sair daqui».
            Uma a uma, espreitou pelas saídas da galeria. Duas não iam dar a lado nenhum. Uma tinha apenas uma saída. As outras duas tinham, respectivamente, três e quatro saídas. Disse para si mesmo que sairia sempre pela galeria que tivesse menos saídas. Sabia que não tinha lógica e que a saída correcta podia muito bem ser outra, mas precisava de um plano para não se deixar dominar pelo desespero. Mesmo que não fizesse sentido. De vez em quando, gritaria, na esperança de que alguém o ouvisse.
            Por vezes, tinha a sensação enervante de ouvir a mesma risada. Ecoava pelas paredes da gruta mas, ao mesmo tempo, parecia longínqua. Era como se alguém o tivesse fechado ali e se risse dos seus esforços para sair.
            A água chegava-lhe já aos joelhos e era cada vez mais difícil andar. Quando lhe chegou à cintura, sentiu uma vontade incontrolável de chorar e quanto mais lutava para se controlar, mais tenso ficava e menos controlo tinha de si próprio. Quando chegou a uma galeria onde o chão terminava abruptamente, dando lugar a uma queda de água, pensou que era o fim. Não era fatalista, mas parecia realmente que o destino estava contra ele. Se a morte por afogamento não o horrorizasse, talvez tivesse desistido. Mas não podia suportar a ideia de se ver debaixo de água, sustendo a respiração até não aguentar mais para não engolir água, até ser inevitavelmente vencido e sentir a água a invadir-lhe lentamente os pulmões, numa morte agonizante...
            Era evidente que, por ali, não podia seguir. «Vou voltar para trás e procurar outra saída». Mas no momento em que a ideia se formava no seu espírito, desequilibrou-se para a frente e foi arrastado pela queda de água. A aflição foi tão grande que não chegou a saber se gritou ou se o susto o deixara mudo. Enquanto caía pela cascata, os seus pensamentos corriam tão depressa como a água: «Vou-me esborrachar lá em baixo... Nunca sobreviverei à queda... Se sobreviver, serei arrastado pela corrente e sabe-se lá onde irei parar... » Aterrou com violência nas águas lá em baixo e a água logo o reclamou e começou a arrastá-lo. A velocidade era estonteante e o barulho, ensurdecedor. Não se passou muito tempo até nova queda de água o arrastar para um plano ainda mais inferior da gruta. Mas desta vez, ao aterrar, não foi arrastado pelas águas. Ali, não havia corrente e a água dava-lhe apenas pelos joelhos. Na verdade, aquela queda de água corria devagarinho e, talvez por isso, não amortecera tão bem a sua queda. Reparou que esfolara o tornozelo, possivelmente, de encontro a uma rocha. Não lhe doía nem sangrava muito, mas o aspecto não era animador. Fazia lembrar os joelhos esfolados das crianças irrequietas.
            Mais calmo, agora que não tinha de lutar contra a corrente, tentou perceber como seria possível que aquela galeria, abaixo do nível das outras, não estivesse inundada. Talvez tivesse a ver com a direcção das correntes. Sim, devia ser isso. Não tinha reparado porque o pânico o não permitira, mas algures lá em cima, a água deveria seguir por mais do que uma direcção. A maior parte, obedecendo à corrente. E apenas o excedente ia parar àquela galeria. Mas estava demasiado grato pela ausência da água para perder tempo a tentar desvendar as leis da física que a tinham desviado.
            Pensou se a pedra não lhe teria caído do bolso no meio de tantos rebolões. Levou a mão ao bolso e os seus receios confirmaram-se. Teve a sensação de que não era um bom presságio. Mas de momento tinha coisas mais prementes em que pensar.
            Um fio de luz escoava-se pelo tecto da gruta e embora este estivesse demasiado distante para que o pudesse ver, isso só podia significar que, lá em cima, havia uma abertura. E se o tecto estava tão longe e mesmo assim, a luz chegava lá abaixo, era porque, com certeza, tinha tamanho suficiente para um homem passar por ela. O problema era que Manuel não tinha corda para escalar. Procurou apoios para as mãos e para os pés. Para um bom alpinista, seriam os suficientes. Manuel não tinha experiência nessa área, mas era um homem desesperado e contava que a necessidade lhe aguçasse o engenho. Sabia que a probabilidade de uma queda era elevada, mas não tinha nada a perder. Se ali ficasse, morreria de certeza. Fincou as mãos na rocha e pôs o pé no primeiro apoio, prometendo a si mesmo que não olharia para baixo. Assim subiu cerca de seis metros, mas em breve teve de parar para recuperar o fôlego. O esforço físico e psicológico era brutal e estava ofegante. Além disso, a humidade e o ar salgado da gruta, em conjunto com o esforço da escalada, faziam-lhe arder o ferimento do tornozelo e as dores começavam a ser insuportáveis. Sempre que mudava o pé para um apoio mais alto, temia que lhe faltassem as forças e acabasse por se estatelar lá em baixo. E quanto mais subia, maior era a tentação de olhar para baixo, como se, do fundo da gruta, uma sereia o encantasse só para o atrair para a morte. Como que para se impedir de ceder a essa tentação, forçou-se a olhar para cima. Não se avistava ainda a abertura, mas Manuel reparou, com certo alívio, que uns dois metros mais acima, havia um nicho na rocha. Lá, poderia descansar e esperar que o repouso contribuísse para aliviar as dores.
            Com um grunhido de esforço, lançou a mão ao apoio mais acima e, de dentes cerrados, concentrou-se novamente na escalada. E só parou quando conseguiu alcançar o nicho, onde imediatamente se abrigou. Sem perceber muito bem porquê, foi tomado de um riso nervoso, quase histérico. Como se troçasse da rocha que o tinha tentado vencer sem sucesso, embora soubesse que o combate ainda não tinha terminado. O nicho não era muito grande. Tinha altura suficiente para acolher um homem sentado e, quanto à largura, para não ter de se encolher, Manuel teve de ficar com as pernas de fora.
            Depois de alguns segundos a recuperar o ritmo respiratório, Manuel examinou o tornozelo. Não havia hemorragia, mas também ainda não formara crosta. Em volta da carne viva, Manuel reparou numa aguadilha amarelada, o que o fez recear uma infecção.
            Estava tão exausto que resolveu encostar-se e fechar os olhos para descansar. Talvez por causa do cansaço, sentiu-se como que a flutuar. «Não posso adormecer», pensou. «Estou fraco e posso perder os sentidos».
            Quando um raio de sol o fez acordar, percebeu imediatamente que a cama e o quarto onde estava não eram os do hotel. Olhou em volta, tentando situar-se. Viu que a divisão era redonda, o que só lhe pareceu estranho durante uns segundos, pois quase de imediato se apercebeu de que devia estar no farol. E com efeito, antes que tivesse tempo de se sentir confuso sobre a forma como lá fora parar, o faroleiro entrou, trazendo numa mão uma caneca fumegante e na outra uma garrafa de whisky.
            Manuel sorriu interiormente, sem poder deixar de sentir uma certa ternura por aquele homem que não conhecia. Com a sua barba branca e a pele do rosto crestada por anos de sol, além da figura entroncada mas bonacheirona, o faroleiro tinha uma tão perfeita aparência de lobo do mar que mais parecia saído de um velho conto. 

– Ah! – exclamou ele, ao dar com Manuel já desperto. – Vejo que já acordou. Teve muita sorte em não se afogar. 

Manuel tinha mil perguntas a fazer, mas talvez por não saber por onde começar, nenhum som lhe saiu da garganta. Pensou que devia estar com a maior cara de parvo do mundo. Mas talvez não fosse a primeira vez que aquele lobo do mar salvava alguém de morrer afogado e por isso, não se espantou com o espanto de Manuel.

– Chamo-me Ricardo – disse. – Ricardo Alves.
– Manuel Dias...           

Estendeu-lhe a caneca de café fumegante, onde deitara um fio de whisky. 

– Tome. Não sou médico, por isso, não sei se faz bem ao corpo. Mas não é a primeira vez que socorro um náufrago e posso garantir que faz bem à alma de quem passou por tal susto. Ora então conte lá o que é que lhe aconteceu. 

Manuel engoliu um trago de café e sentiu a gostosa sensação do calor espalhar-se-lhe pelos músculos.

 – Para lhe dizer a verdade, nem sei bem... Quer dizer, fui visitar as grutas com a minha mulher, mas perdi-me do grupo e não consegui encontrar a saída. Ou melhor, consegui encontrar uma saída, mas tive de escalar a rocha e estava tão cansado que adormeci antes de a alcançar. Mas o meu sono não devia ser profundo, pois acho que senti alguém carregar-me nos braços para o exterior. Foi o senhor?
– Não, meu amigo. Eu encontrei-o fora da gruta, em cima de uma rocha rodeada de mar. Por isso lhe disse que tinha tido muita sorte em não se afogar. Quando o vi, pensei que estava morto. Mas depois de o içar para o meu barco, percebi que estava apenas inconsciente. 

Manuel ficou confuso. Sabia que não saíra da gruta pelo próprio pé. Se não fora o homem que o resgatara, quem o teria tirado de lá? Mas a sua confusão durou apenas alguns segundos, pois o seu pensamento virou-se de repente para Paula.

 – Senhor Ricardo, – disse – importa-se que faça um telefonema? A minha mulher deve estar muito preocupada.
– Esteja à sua vontade. Consegue levantar-se ou quer que seja eu a ligar? 

Manuel pôs as pernas de fora da cama e experimentou pôr-se de pé. Não estava demasiado abalado.

– Aqui está o telefone – disse Ricardo. Mas um pequeno objecto poisado ao lado do aparelho gelou o sangue de Manuel.
– Sr. Ricardo – chamou, esquecendo-se por momentos de Paula. – Esta safira... Tinha-a comigo, quando me encontrou? 

Pareceu a Manuel que o rosto do faroleiro empalideceu antes de responder; como se tivesse reencontrado qualquer coisa que preferia que estivesse perdida para sempre. 

– Não é uma safira – respondeu, por fim. – É uma água-marinha. E porque haveria o senhor de ter a jóia da minha filha? 

Manuel sentiu-se tomado de um súbito pânico. Sentiu-se como se lhe tivessem dado um murro no estômago. Foi a custo que escondeu do faroleiro a inquietação. 

– Tem uma filha? – perguntou, tentando adoptar o ar natural de quem pergunta por perguntar.
– Tive. Mas morreu. 

E como que habituado à curiosidade de quem não entende como os filhos partem antes dos pais, acrescentou: 

– Afogou-se num naufrágio.
– O do paquete islandês? – perguntou Manuel, lembrando-se da história que tinha ouvido contar. 

Tomou o silêncio como confirmação. Tentando quebrar o constrangimento de ambos, pegou no telefone, mas ficou com o dedo suspenso ao perceber que não tinha linha. 

– Não tem sinal. 

Ricardo levantou um par de olhos surpreendidos. Dirigiu-se à pequena mesa redonda, de madeira, com três pés, onde se encontravam, semi-espalhados, alguns jornais, papéis soltos e também a correspondência. Pegou no envelope que estava por cima, que estava aberto, e retirou o conteúdo. 

– O prazo limite é só para a semana. Não o podem ter cortado por falta de pagamento.
– Será avaria? Tem telemóvel, para ligar para a companhia?
– Não, amigo. Isso é areia demais para a minha camioneta. Burro velho não aprende línguas. 

Manuel achou que, realmente, as tecnologias modernas não combinariam com o quadro do velho lobo do mar. Mas parecia-lhe estranho que personagens assim existissem de verdade, fora das páginas dos livros ou dos ecrãs de cinema. 

– Bom – disse, – de qualquer forma, já me sinto bem. Posso voltar para o hotel. Sabe dizer-me se o Hotel Cova da Sereia é muito longe? Não sei muito bem onde estou. Será melhor chamar um táxi?
– Nada disso – respondeu Ricardo. – Era o que faltava, eu deixar abalar um náufrago assim, sem sequer ter sido examinado.
– Não se preocupe. Prometo que assim que me encontrar com a minha mulher, vou direitinho ao posto médico para ver se está tudo bem e para me mudarem o curativo que me fez.

Na verdade, não fazia grande tenção de cumprir a promessa, uma vez que o organismo não lhe enviava nenhum sinal de que tal fosse necessário. 

– Qual curativo?
– Do tornozelo.
– Amigo, eu não lhe fiz curativo nenhum porque não foi preciso. Vi que trazia um penso novo e limpo. Nem sequer estava molhado. Achei melhor não lhe mexer. 

Mais uma vez, Manuel sentiu-se pouco à vontade com tanto mistério.

– Sr. Ricardo, desculpe a pergunta... Essas histórias que contam sobre os lamentos das almas dos náufragos... 

O semblante de Ricardo tornou-se sombrio, certamente, por saudades da filha morta. 

– Desculpe, sei que deve ser um assunto doloroso. Mas aconteceram-me coisas estranhas na gruta. Só quero ter a certeza de que não estou doido.
– Senhor Manuel, eu acredito na vida depois da morte, mas se a minha filha quisesse comunicar-se com alguém deste mundo, seria certamente comigo. Quanto aos outros náufragos, não lhe sei dizer o que é verdade e o que é mentira. Só sei que nunca vi nem ouvi nada disso que contam. Seja como for, nunca permiti que um náufrago daqui saísse sem ter sido examinado. Eu vou buscar o Dr. Artur. A esta hora, costuma estar no café. E de caminho, aproveito para ligar para a companhia dos telefones. Se tiver fome, há comida no frigorífico, lá em baixo, na casa das máquinas.

Manuel percebeu que, longe de estar apenas a ser amável, muito possivelmente, Ricardo ficaria ofendido com uma recusa. Embora um pouco contrariado por manter Paula sem notícias durante mais tempo, fez sinal com a cabeça de que acedia ao pedido.
Ricardo saiu e Manuel sentou-se no sofá, disposto a esperar. Ainda pensou em pegar no jornal para ver se passava mais depressa o tempo até Ricardo voltar, mas acabou por desistir da ideia. Quando tinha pressa, nunca se conseguia concentrar mais de três segundos seguidos. Depressa começou a ficar ansioso e a sentir que o tempo razoável para o faroleiro voltar já tinha passado. «Onde raios se meteu o homem?», pensou. Descruzou as pernas, fez deslizar as mãos sobre elas até ao joelho e suspirou. Voltou a cruzá-las e fez um trejeito com o nariz e os lábios, coisa que sempre acontecia quando estava impaciente. Por fim, levantou-se, irritado. «Vou-me mas é embora. Deixo-lhe um bilhete a dizer que não podia esperar mais e depois logo lhe escrevo ou telefono a agradecer».
Mas quando se levantou, os seus olhos foram bater por acaso na água-marinha e a confusão voltou ao seu espírito. Porque haveria no farol uma pedra igual à que encontrara na gruta? Seria a mesma pedra ou apenas uma igual? Um cavalo-marinho de água-marinha não devia ser assim tão comum… E via agora que também esta apresentava, no mesmo sítio, um pequeno encaixe redondo e vazio. Mas como poderia a pedra que tinha achado e depois perdido na gruta estar agora ali? E o que significavam todas aquelas coisas que lhe tinham acontecido na gruta? Ricardo tinha dito que a jóia era da filha e Manuel sentiu curiosidade sobre a rapariga. Visto que tinha morrido, seria má educação – até crueldade – fazer perguntas sobre o assunto ao faroleiro. Mas talvez houvesse qualquer coisa no farol que o pudesse ajudar a dar um sentido a tudo aquilo. «De resto, nunca vi um farol por dentro», pensou. «Já que aqui estou…»
Deu uma rápida olhadela à divisão onde estava, que servia de quarto ao faroleiro, mas tinha também alguns elementos de sala, como o sofá onde se tinha sentado, a mesa do telefone e ainda a pequena mesinha-de-café repleta de jornais, revistas e correspondência. Ali, não havia nada.
Saiu para o corredor e viu a escada em caracol que, do ponto onde ele estava, subia e descia. Começou a descer, mas parou a meio, com a estranha sensação de que o silêncio se tinha tornado mais denso, mais pesado. Como se de repente, o farol fosse a única coisa que existia no mundo. Isso fê-lo sentir-se desconfortável, pouco à vontade. Era a mesma sensação que tinha tido na gruta, quando ao tentar encontrar o grupo, se tinha apercebido do silêncio absoluto que o envolvia.
A impressão de que alguma coisa tinha passado a voar por trás de si fê-lo virar-se instintivamente. Pareceu-lhe ver, pelo canto do olho, a ponta esvoaçante de um vestido claro, talvez branco, mas foi uma coisa tão rápida que não saberia dizer se de facto a tinha visto ou se era apenas a imaginação a pregar-lhe partidas. O desconforto deu lugar ao medo. A vontade que teve foi de se precipitar para a saída o mais depressa possível, mas aquela sensação de que havia uma coisa estranha atrás de si, embora o arrepiasse, também lhe despertava como que uma obsessiva curiosidade. Virou-se, mas não estava lá nada.
Teimosamente, desceu até ao rés-do-chão e entrou na casa das máquinas. Viu um gerador e várias outras máquinas que não conhecia, mas que calculou que fizessem parte do mecanismo que fazia funcionar o farol. Havia ainda um frigorífico e uma mesa rectangular, pequena, tipo mesa de campismo, e uma cadeira simples. Aquele espaço devia servir também de escritório ao faroleiro. Não parecia lá muito confortável, mas também não devia precisar de o usar com frequência. Havia uma agenda, um bloco de notas e uma caneta. E no canto esquerdo da mesa, havia uma moldura com uma fotografia. Uma fotografia de busto de uma rapariga e um rapaz, com o braço em volta dos seus ombros. Reconheceu imediatamente o homem. Era o guia da visita às grutas. Manuel não conseguia perceber que idade teria a rapariga que estava ao seu lado. Era jovem, isso era certo. Mas parecia-lhe que tanto poderia ter quinze anos como vinte e cinco. E era bonita como todas as jovens, embora Manuel não a achasse fascinante. Os cabelos, compridos, poderiam ter sido morenos se ela vivesse noutro lugar, mas ali, sob o efeito do sol e do sal marinho, eram quase loiros. E os olhos castanhos eram vivos e risonhos. Inocentes, mas não propriamente ingénuos, pois também havia neles um rasgo de travessura. Isso fê-lo lembrar-se do riso que ouvira na gruta e do rosto que pensara ter visto desaparecer no lago. Fora uma coisa tão breve que não saberia dizer se era o mesmo rosto... Mas não, com certeza que aquilo que vira na gruta fora apenas fruto da imaginação, ilusão de óptica das águas, misturada com o terror de estar sozinho num lugar que ia inundar-se a qualquer momento e de onde ele não sabia como sair. Mas depois, apercebeu-se de que a rapariga tinha qualquer coisa ao pescoço. E não se surpreendeu quando confirmou que era a pedra azul em forma de cavalo-marinho. Só que ali, o encaixe estava preenchido por uma pequena pedra redonda e verde.
Então, era aquela a filha do faroleiro. E tudo indicava que havia uma relação íntima entre ela e o guia das grutas. Lembrou-se de como ele contara a história do navio que se afundara e das almas que supostamente vagavam pelas grutas. Admirou-se que alguém com uma ligação pessoal a uma das vítimas falasse com tanta ligeireza sobre o assunto, brincando com as histórias sobre possíveis assombrações. Manuel achou que ainda que o homem fosse céptico e não acreditasse em nada daquilo, teria de ser frio como gelo para que aquilo não o afectasse. Mas no fundo, talvez não passasse de uma defesa. Afinal, contar aquela história vezes sem conta fazia parte do seu trabalho e se não tentasse distanciar-se, como poderia suportá-lo?
Manuel suspirou, pensando que o mais provável era que nada do que pudesse encontrar explicasse claramente as coisas que lhe tinham acontecido. Seria melhor deixar o tal bilhete ao faroleiro e esquecer toda a experiência daquele dia? Estendeu a mão para o bloco de notas, mas a mesma sensação de que havia algo atrás de si fê-lo virar-se de novo, certo de que, mais uma vez, nada lá iria estar. Porém, estacou horrorizado. À porta, de pé, mas levitando uns bons dois palmos acima do chão, estava uma mulher. Era jovem e era bonita, ainda que não deslumbrante. Manuel poderia ter pensado que se tratava de alguma ilusão de óptica, de alguma partida de mau gosto, mas não. Embora nunca tivesse visto um fantasma – nem nunca tivesse acreditado propriamente na sua existência – soube imediatamente que era isso que ela era. E o seu rosto era o da rapariga da fotografia. E o facto de ela se ter postado à sua frente, barrando-lhe o caminho, só podia significar que queria alguma coisa dele. Quando ela lhe virou as costas, percebeu que queria que subisse atrás dela. Manuel achou que devia virar-se na direcção oposta, para a saída do farol, e correr dali para fora o mais depressa possível. E foi isso que começou a fazer, apesar do medo de que o espectro reagisse com fúria. Mas ela apenas pediu, em tom suplicante: 

– Não vás, por favor. 

Talvez por causa daquele silêncio sobrenatural, a voz ressoava fortemente, como se o farol fosse uma enorme estrutura oca.
Socorrendo-se de toda a sua coragem, Manuel lá conseguiu articular: 

– O que queres de mim?
– Ajuda-me. Eu ajudei-te. 

Só então Manuel percebeu que ela falava sem sequer mexer os lábios. Como se conseguisse fazer penetrar no cérebro de Manuel os pensamentos que se formavam no seu. 

– Tu ajudaste-me? 

            Em jeito de resposta, o fantasma dirigiu o olhar para o penso no tornozelo.

– Então, foste tu que me tiraste da gruta? 

Mas em vez de responder, a jovem limitou-se a virar as costas e a subir as escadas, como quem dissesse: «Se aceitas ajudar-me, segue-me».
Manuel não saberia explicar porque se decidiu a segui-la. Porque se sentia em dívida por ela o ter ajudado? Porque tinha medo do que um fantasma poderia fazer na sua ira, caso não respondesse ao apelo? Porque sentia que se alguém nos pede ajuda, devemos ajudar sempre que pudermos? Por todas essas coisas juntas?
A rapariga passou pelos aposentos do faroleiro e continuou a subir, com Manuel a uma distância que ele esperava que fosse segura. Já na câmara da lanterna, para confusão de Manuel, desapareceu. Manuel olhou em volta, tentando perceber onde ela se tinha metido. 

– Onde estás? – perguntou. Mas não houve resposta. 

«Como é que ela quer que eu a ajude se desapareceu sem sequer me dizer o que queria de mim?» Começou a pensar em porque andaria a rapariga a vaguear pelo farol. Talvez se dedicasse a zelar pelo faroleiro, protegendo-o de tempestades e outros perigos. Mas o que andaria o seu espírito a fazer na gruta? E o que estava o seu pendente a fazer dentro daquele lago?
Manuel apercebeu-se de que tinha escurecido. Talvez não devesse espantar-se. Afinal, deveria ter passado bastante tempo na gruta e não sabia quanto tempo decorrera desde que adormecera naquele nicho da rocha até acordar no farol. Mas embora não pudesse jurar, pareceu-lhe que fora uma coisa repentina, como se num segundo fosse dia ainda claro e no seguinte, a noite tivesse já caído.
Então, do lado de lá, viu uma rapariga com as costas arqueadas para trás sobre o parapeito do varandim, as mãos cerradas em volta do ferro para não cair, enquanto um homem, debruçado sobre ela em atitude ameaçadora, parecia empurrá-la com as mãos que tinha em torno do seu pescoço...
Instintivamente, Manuel tentou abrir a porta de vidro que permitia entrar na câmara da lanterna que, por sua vez, dava acesso ao varandim, mas estava fechada e não conseguiu abri-la. Começou então a bater violentamente com os punhos no vidro resistente, enquanto gritava coisas como «pare com isso!» e «largue-a!» para que o homem o visse ou ouvisse e caísse em si. Embora a distância fosse curta, na escuridão que tinha caído, Manuel não conseguia distinguir claramente as figuras. Então, de repente, a porta abriu-se e Manuel entrou de rompante, a tempo de ouvir o grito prolongado da rapariga ao galgar o parapeito, mas não de lhe deitar a mão para a segurar...
Manuel debruçou-se, ele próprio, sobre o varandim, e por um momento, tão fugaz como um floco de neve que se derrete ainda antes de tocar no chão, teve a sensação de ver na água um pequeno semi-rígido, igual àquele que tinha levado o grupo até à gruta. Lá dentro, estava um corpo de mulher, com um vestido comprido e um colar com um pendente azul e translúcido em forma de cavalo-marinho... E o homem sentado ao comando, com a cabeça apoiada nas mãos num gesto de profundo desespero, era o guia. Mas ao mesmo tempo, um ruído breve, um estalo, mas de uma intensidade tremenda, fez-se ouvir, e uma luz tão potente que cegou Manuel por alguns segundos, inundou tudo. Manuel estremeceu, de olhos esbugalhados, ao ver a lanterna do farol acesa, mas o susto não demorou mais que uns instantes, pois lembrou-se de que os faróis tinham sido, na sua maioria, automatizados.
O homem já não estava no varandim. Desaparecera tão de repente como se nunca lá tivesse estado. Estava sim, ao cimo das escadas, Ricardo. E com ele estava um homem dos seus cinquenta e poucos anos que Manuel calculou ser o médico. Antes de falar com os homens, debruçou-se ainda mais uma vez sobre o parapeito. Não, não podia ter visto nada. A distância do varandim até às águas lá em baixo, de onde chegava o vigoroso marulhar das ondas a bater com força no promontório onde estava o farol, era tão grande que ainda que lá estivesse realmente um pequeno barco, o máximo que poderia ver seria uma qualquer forma indistinta.
Vencido todo o seu cepticismo, Manuel tinha agora a certeza. Aquilo que tinha acabado de ver não tinha acabado de acontecer. Era como se uma força qualquer tivesse querido que ele assistisse em diferido a um evento que não vira em directo. Certamente, para que pudesse emendar alguma coisa. Mas o quê? A rapariga que tinha visto era a filha de Ricardo; disso não tinha dúvidas. Não conseguira ver o rosto do homem que a empurrara para a morte, mas lá em baixo, por uma fracção de segundos, vira claramente o guia das grutas que, pela fotografia na sala das máquinas, tinha com ela uma relação íntima. Teria ele assassinado a rapariga, atirando-a do alto do farol? Talvez o seu espírito vagueasse pela gruta para atormentar o seu assassino e pelo farol para tentar dizer ao pai o que realmente lhe tinha acontecido.
Quando se aproximou dos dois homens e deixou que Ricardo lhe apresentasse o Dr. Artur, estava decidido. Ia tentar saber, junto do faroleiro, se haveria alguma hipótese de a filha não ter morrido no naufrágio. Provavelmente, não ia querer falar do assunto, mas se tentasse tirar nabos da púcara enquanto o médico o examinasse, talvez o orgulho que Ricardo tinha na hospitalidade que estendia aos seus náufragos o impedisse de correr com ele por desrespeito para com a sua dor de pai.
Enquanto desciam a escada, Manuel ouviu Ricardo desculpar-se pela demora e justificar-se com a necessidade de procurar o Dr. Artur que, afinal, não estava no café. Mas Manuel já não estava aborrecido com a demora. Pensava até que talvez ela não tivesse sido nenhum acaso.
Tinha pretendido abordar o assunto com delicadeza, mas sabia que tinha pouco tempo e além disso, se começasse com rodeios, nunca mais chegaria onde queria chegar. Por isso, enquanto o Dr. Artur lhe examinava os olhos, o auscultava, lhe media a tensão e o ritmo cardíaco e, por fim, lhe mudava o penso do tornozelo, disse: 

– Sr. Ricardo, hoje vi um fantasma... 

O médico, que nesse momento lhe tomava o pulso olhando para o relógio, levantou os olhos, surpreendido. Não disse nada, mas Manuel teve a impressão de que se perdera na contagem e teve de começar de novo. 

– Senti-o na gruta e enquanto esteve fora, vi-o, aqui no farol. 

Achou que talvez fosse menos brutal descrever o que tinha visto e deixar Ricardo tirar as suas próprias conclusões do que dizer peremptoriamente «era o fantasma da sua filha». Assim, descreveu fisicamente a aparição e para que não restassem dúvidas, disse ter a certeza de que era a rapariga da fotografia que estava na casa das máquinas. Depois, esperou a reacção de Ricardo. O faroleiro parecia pouco à vontade quando respondeu: 

– Sr. Manuel, sei que as pessoas cá da terra acreditam em certas coisas e às vezes até vêem coisas que lá não estão, mas muito me espanta que um rapaz novo, da cidade, se deixe levar assim pela imaginação. 

Mas o médico ripostou: 

– Homem, como pode ficar tão indiferente?! Até eu vejo que é a Aidinha... 

Porém, Manuel não estranhou que Ricardo não se tivesse rendido às evidências, que não tivesse exclamado, emocionado, «é a minha filha!» No fundo, talvez até já soubesse. E talvez até o consolasse, pensar que a filha lhe queria tanto que, mesmo depois de morta, continuava por ali, a zelar por ele. E talvez não estivesse disposto a partilhar isso com um intrometido qualquer. Mas a rapariga tinha-lhe pedido ajuda e embora lhe custasse, teria de lhe dizer que a verdadeira razão para a sua permanência neste mundo era outra. 

– Acho que ela não morreu no naufrágio – disse. – Acho que foi assassinada pelo rapaz que está com ela na fotografia e que é guia nas grutas. 

E depois de ter descrito a forma como o fantasma o conduzira à câmara da lanterna, a cena a que assistira lá em cima e a imagem do barco com um corpo dentro, comandado pelo guia das grutas, viu o rosto branco de Ricardo enquanto o médico falava: 

– Aquele mariolas nunca me enganou. E lembro-me muito bem das coisas que ficaram mal explicadas na altura. Como o facto de a rapariga ter viajado assim, sem mais nem menos, sem mais consideração pelo pai do que um bilhete a dizer que não sabia quando voltava.
– Mas a minha filha vinha de viagem no navio que se afundou... 

Mas Ricardo falou sem convicção, como se aquilo fosse a história que lhe tinham contado e da qual já não estava tão certo. E o Dr. Artur acrescentou: 

– E agora parece-me realmente conveniente demais que ela tenha morrido num acidente em que a maior parte dos corpos ficou irreconhecível por causa da violência com que o mar os atirou contra as rochas.
– Talvez ele a tenha matado antes do naufrágio e quando essa tragédia se deu, aproveitou o facto para explicar o desaparecimento – alvitrou Manuel. 

Manuel pediu ao faroleiro que chamasse o rapaz – Bruno, assim os dois homens disseram ser o seu nome – ou que o deixasse chamá-lo ao farol. Sabia que, provavelmente, não ia levar a lado nenhum. Não tinha provas contra ele e ainda que aquilo que tinha para lhe dizer pudesse assustá-lo e levá-lo a confessar num momento de pânico, e ainda que, como se vê nos filmes, conseguisse gravar essa confissão, duvidava que viesse a ser válida em algum tribunal. Mas Manuel sabia – embora não soubesse explicar porquê – que não era isso que a rapariga lhe pedia. Não era tanto a punição, mas sim a exposição do assassino que ela desejava. Talvez para que, pelo menos, o pai ficasse a conhecer a verdade.
Ricardo também argumentou que era inútil, que assassino nenhum ia confessar de livre vontade uma coisa de que não havia provas. Mas Manuel insistiu em que, apesar disso, ele lhe fizesse a vontade, e o Dr. Artur achou que seria bom que Bruno soubesse que o pai de Aidinha sabia o que ele tinha feito, ainda que nada pudesse fazer contra ele, para que não só a consciência, mas também a vergonha o consumisse. 

– Está bem – concordou Ricardo, por fim. Pegou no telefone, que continuava avariado, e depois disse:
– Eu vou buscá-lo. 

Saiu com o Dr. Artur, que aproveitou a deixa para voltar para casa. E Manuel sentou-se à espera, no quarto do faroleiro. Tinham passado talvez uns dez minutos quando ouviu barulho na casa das máquinas. Desceu, para ver se era Ricardo que chegava com Bruno. Mas o que ele viu ao estacar à porta, a passagem barrada por um vidro que poderia jurar que não estava lá antes, foi Ricardo de pé, curvado e com os punhos apoiados na mesa, que apresentava agora uma garrafa de whisky vazia e outra já com menos de metade do seu conteúdo, a ouvir em atitude de desalento os gritos zangados da filha. A rapariga estava morta, por isso, aquilo era o seu espírito. Mas estaria Ricardo mesmo ali ou seria também um eco de algo que já tinha acontecido? Então, reparou, com espanto, que conseguia ouvir claramente, através do vidro, aquilo que a rapariga dizia: 

– Acabo de chegar e é com isto que sou recebida! Como pode ter deixado isto acontecer?! Sabe quantas pessoas vinham naquele barco?! Faz ideia de quantas morreram?! Mais de quatrocentas! E tudo porque não é capaz de passar uma noite longe da maldita bebida! 

Manuel estremeceu ao ouvir o tom autoritário da resposta: 

– Cala-te, rapariga! Achas que já não me sinto mal que chegue? 

E em seguida, como que falando mais para si do que para ela: 

– A culpa não foi minha... A luz não acendeu... 

Mas a rapariga continuava zangada: 

– O sistema automático pode ter falhado, mas se não estivesse bêbado, podia ter accionado os sistemas manuais! 

No rosto da rapariga estava estampada uma imensa desilusão. Houve uma pausa na discussão e depois, o faroleiro disse: 

– Filha, ninguém precisa de saber... O sistema automático falhou. Ninguém precisa de saber que a avaria não apanhou também os sistemas manuais. 

Perante o rosto ainda mais chocado da rapariga, Ricardo argumentou:

– Juro-te que aprendi a minha lição. Nunca mais bebo em serviço...
– Não! – Cortou ela. – Ao menos, assuma a responsabilidade. As vítimas merecem a verdade. Assuma a responsabilidade e estarei ao seu lado. 

E Manuel julgou perceber uma nota de desprezo na voz dela quando acrescentou: 

– Mas garanto-lhe que se tentar esconder, eu mesma faço a denúncia. 

Em seguida, virou costas, passou através do vidro e Manuel sentiu um misto de frio e humidade, como se uma onda o tivesse encharcado, quando ela passou através do seu próprio corpo para depois subir a escada. Manuel olhou ainda uma vez mais para Ricardo, na casa das máquinas, antes de seguir a rapariga até ao varandim. Mas embora Manuel não o tivesse visto passar, Ricardo estava agora também no varandim. Era ele que tinha as mãos em volta do pescoço da rapariga que se agarrava ao parapeito para não cair. E também agora conseguia ouvir claramente as palavras através da porta de vidro que, mais uma vez, encontrou fechada e não conseguiu abrir. 

– Como te atreves?! – Rosnou o faroleiro, a fúria aumentada pela embriaguez ainda não curada. E os abanões iam pontuando as suas frases cada vez com mais violência. – Como ousas ameaçar-me? Tinhas coragem de acusar o teu próprio pai! 

E embora Ricardo estivesse de costas, Manuel pôde sentir que os olhos lhe faiscavam de ódio quando vociferou «não vales nada!» e um último safanão lançou a rapariga às águas ruidosas lá em baixo.
Depois de todas as coisas que tinha visto naquele dia, Manuel já não se espantou quando, mais uma vez, a porta que lhe resistira se abriu, nem quando viu Ricardo esfumar-se, evolar-se, e o varandim mergulhar novamente na solidão daquele promontório metido pelo mar dentro. Mas sobressaltou-se quando uma mão forte, rude, lhe empurrou a nuca para a frente, obrigando-o a debruçar-se perigosamente sobre o parapeito, enquanto outra lhe torcia um braço atrás das costas, para que não pudesse defender-se. Não teve a menor dúvida de que não era nenhum fantasma, nenhum eco do passado, mas sim o Ricardo real que lhe gritava: 

– Porque veio intrometer-se naquilo que não lhe diz respeito? Se lhe fiz mal naquela noite, foi porque ela me fez perder a cabeça! Todos os dias pago em vergonha e remorsos o meu pecado. E nunca mais toquei em álcool, cumpri a promessa que lhe fiz! 

Manuel experimentou o mesmo terror que a rapariga devia ter sentido à aproximação da morte, mas de repente, sentiu-se puxado para trás, libertou-se das mãos de Ricardo e viu que a força que o puxara não era senão Bruno, que agora agarrava Ricardo pelo colarinho e o acusava:
 
–  Eu sabia! Eu sabia que não era para a Islândia que ela tinha ido! Sabia muito bem onde ela estava. Só quis sair daqui por uns dias porque já não suportava as suas bebedeiras! Só queria alguns dias de paz... E quando encontrei o corpo na manhã a seguir ao naufrágio, não percebi porque me teria mentido; porque não me tinha dito, quando à noite falava comigo ao telefone, se era na Islândia que estava. Então, suspeitei. Mas não quis acreditar nas minhas próprias suspeitas!

Manuel viu Ricardo libertar-se por momentos das mãos de Bruno para em seguida correr e investir contra ele. E conforme Bruno se desviou do parapeito a que estava encostado para evitar o choque, o excesso de balanço projectou-o no vazio e um grito lancinante encheu a noite.
Manuel sentiu-se mal por ter desconfiado do rapaz, mas acima de tudo, sentia-se grato por ele ter aparecido tão providencialmente. Bruno também parecia espantado, mas ao mesmo tempo aliviado. 

– Não posso acreditar! – disse. – O senhor é o meu turista perdido! Julgámos que não se safava. Bombeiros, Polícia Marítima, Protecção Civil, todos disseram aquilo que eu próprio já sabia. Que era impossível entrar na gruta para o salvar antes de a maré voltar a vazar. A sua mulher está desesperada.

            Em circunstâncias normais, o primeiro impulso de Manuel teria sido ir a correr sossegar Paula, mas estava demasiado confuso e só lhe ocorreu perguntar: 

– Foi o faroleiro que lhe pediu para vir?
– Não. Foi outra... pessoa.
– Mas como é que soube?
– Quando desconfiei pela primeira vez da verdade, fui até ao lago da gruta e fiz um pedido. Pedi para um dia saber o que tinha realmente acontecido. Hoje, tive um dia cheio de coisas estranhas que acabaram por me conduzir até aqui. E tudo começou quando, depois de o senhor desaparecer, encontrei no meu barco aquilo que tinha atirado para o lago.

E enquanto falava, tirou qualquer coisa do bolso, abriu a mão e mostrou a Manuel um pendente azul translúcido, em forma de cavalo-marinho, com um pequeno encaixe redondo e vazio no lugar do olho.