domingo, 28 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo XVII (PROVISÓRIO)

Durante as semanas que se seguiram, enquanto eu e os outros soldados aguardávamos a ordem de regressar a casa, tentei convencer Luz a deixar o convento e a recolher-se à casa da tia Francisca, pois aquele lugar estava cheio de recordações penosas. Mas ela afirmou que não me queria deixar sozinho e que a companhia das outras raparigas e das Irmãs impedia que essas recordações se tornassem demasiado pesadas.
            Uma vez que a guerra terminara e a nossa presença ali era apenas por precaução, todos os dias eu ia visitar Luz ao convento. Luz nunca mo disse, mas Eugénia comunicou-me que depois da morte de Diogo, Luz começara a ter complicações com a gravidez. Fiquei preocupado, pois já tinha reparado que ela não parecia estar bem, mas quando lhe falei no assunto, ela limitou-se a responder:
 
– Foram só algumas indisposições. É normal. A Eugénia não te devia ter preocupado com esse assunto.
 
            De início, voltei a insistir para que ela fosse para o Porto, mas acabei por deixá-la convencer-me que de facto, Eugénia exagerara. Porém, cedo descobriria como me enganava.
            Naquele dia, não eram ainda oito e meia da manhã quando eu me dirigi ao convento. O dia das freiras iniciava-se cedo e as raparigas também se erguiam com os primeiros raios de sol, pelo que não receei ir interromper-lhes o descanso. Quando passei os portões que davam acesso ao jardim, vi, junto à entrada do convento, um corpo de mulher, caído no chão. Não precisei de muito tempo para perceber que se tratava de Maria da Luz. Corri para ela, a fim de a socorrer. Luz estava deitada de lado, com os joelhos dobrados, curvada sobre o ventre e chorando de dor. Sabia que o tempo de Luz ainda não tinha chegado ao fim, pelo que aquilo só podia significar alguma grave complicação.
 
– Luz! – exclamei, tentando levantá-la.
 
            Mas ela soltou um grito de dor e eu, apavorado, larguei-a instintivamente.
 
– Pedro... – soluçou ela.
 
            Reparei então que o seu vestido estava manchado de sangue. Luz tinha uma hemorragia. Senti o chão fugir-me debaixo dos pés. Diogo tinha já partido. Não era possível que Deus quisesse levar-me também Luz.
 
– Vou buscar ajuda – disse.
– Não me deixes...
 
            Sentia-me horrivelmente por ter de a deixar sozinha naquele estado, ainda que por poucos minutos, mas tinha de ir buscar alguém que soubesse o que fazer.
 
– É só por um segundo – assegurei.
 
            Corri pelos corredores do convento até encontrar Eugénia, que declarou:
 
– Se alguma das Irmãs o vê a correr aqui dentro, vai ter sermão e missa cantada. Aconteceu alguma coisa?
– A Luz... acho que é o bebé.
– Onde é que ela está?
 
            Em poucos minutos relatei a situação e tanto Eugénia como algumas das outras enfermeiras que tinham ouvido acorreram ao jardim. Com a ajuda de Eugénia, transportei Luz para dentro do convento e levei-a até ao seu quarto. Eugénia e as outras enfermeiras fizeram-me sair e trancaram a porta do quarto.
 
– Onde está o cirurgião? – perguntei a uma freira, que entretanto tinha sido avisada do que se passava e apareceu naquele momento.
– Foi-se embora. Quase todos os doentes foram já transferidos para hospitais civis. Os que restam, estão apenas ao cuidado das moças.
– E não há maneira de o mandar chamar?
– Mesmo que tivesse um cavalo, seriam nove horas de distância e outras tantas para voltar. Seja como for, o Dr. Rocha pode ser muito bom cirurgião, mas pouco há-de saber sobre o nascimento de crianças. Eugénia assistiu ao parto de duas das suas irmãs.
 
            De dentro do quarto, para além dos gritos da minha irmã, vinham as vozes das outras raparigas que lá estavam com ela. Pareciam falar ao mesmo, dando a impressão de estarem extremamente atarefadas. Infelizmente, não conseguia perceber o que diziam. Só os gritos de dor de Maria da Luz se ouviam nitidamente e estavam a ter o efeito de me arrepiar. As Irmãs tentaram fazer-me sentar noutra divisão, mas como não conseguiram arrancar-me dali, acabaram por me trazer um banco, para que eu pudesse esperar à porta do quarto. Mas nervoso como estava, acabei por passar a maior parte do tempo a andar de um lado para o outro.
            As horas passaram e do outro lado da porta, eu continuava a ouvir a minha irmã, ora chorando, ora gritando. À medida que o tempo se arrastava, o receio de perder Maria da Luz foi-se tornando cada vez mais intenso e deviam ter já passado cerca de seis horas quando, desesperado, murmurei:
 
– Por favor, meu Deus, se tens de levar alguém, leva a criança. Não me leves Luz...
 
            Talvez Deus tenha querido castigar-me por ultimamente Lhe ter virado as costas. Ou pelo meu egoísmo. Afinal, que direito tinha eu de decidir da vida de um ou de outro? Pouco depois, Eugénia abriu a porta e saiu. Trazia, embrulhado num lençol, o corpo sem vida do meu sobrinho.
 
– Posso pegar-lhe?
– Está morto, Sr. Pedro. Não chegou a respirar.
– E Maria da Luz?
 
            Eugénia suspirou e percebi na sua expressão uma certa pena.
 
– Luz está morta? – indaguei, sacudindo-a com tanta violência que ela pareceu ficar assustada.
– Não... Ainda não...
 
            Alarmado com aquelas palavras, afastei-a do meu caminho e precipitei-me para o quarto. As outras enfermeiras saíram ao ver-me. Luz jazia na cama, os olhos fechados, os cabelos desgrenhados. A um canto do quarto, um monte de lençóis manchados de sangue, juntamente com o vestido que Luz trazia antes de as enfermeiras lhe mudarem a roupa. Tinha os olhos fechados, os braços estendidos ao longo dos lençóis. Nunca parecera tão frágil. Ao ouvir os meus passos, abriu os olhos, que se encheram de lágrimas ao ver-me.
 
– O meu bebé... – soluçou. – O meu bebé morreu.
 
            O seu corpo estremeceu num choro manso e silencioso. Chorava encolhida sobre o ventre, em parte ainda por causa da dor, mas também porque não queria acreditar que tinha perdido o filho. Afaguei-lhe carinhosamente a testa, mas as suas lágrimas, em vez de cessarem, redobraram. Luz quis sentar-se na cama. Protestei, pois estava demasiado fraca, mas visto que não desistia, ajudei-a. Imediatamente, ela abraçou-me e disse:
 
– Restas tu, Pedro... Sê feliz por nós...
 
            Percebi que, com aquilo, ela queria dizer que sabia que ia morrer. Eu também o sabia, pois as palavras de Eugénia e o aspecto debilitado da minha irmã não deixavam margem para dúvidas. Então, aconteceu algo que eu já não esperava que acontecesse. As lágrimas que eu procurara inutilmente durante tanto tempo, começaram a rolar pelo meu rosto enquanto Luz chorava abraçada a mim. Ficámos assim ainda durante algum tempo, até que, alarmado, constatei que já não sentia o seu soluçar, o bater do seu coração junto ao meu peito, a sua respiração... Maria da Luz estava morta. Deitei-a com cuidado e continuei a chorar... por ela, por Diogo, pelo meu sobrinho, por todos aqueles por quem não conseguira ainda chorar. Mas infelizmente, isso não me fez sentir melhor. Apenas permitiu que a minha raiva crescesse. Raiva contra a guerra e contra o mundo... Raiva contra Deus, que me despojara assim de todos aqueles a quem eu quisera bem.
            Notando a minha demora, Eugénia voltou a entrar. Ao ver-me chorar junto ao leito da minha irmã, percebeu imediatamente que Luz tinha morrido. Aproximou-se, colocou gentilmente uma mão sobre o meu ombro e declarou:
 
– Maria da Luz está junto de Deus. Com o filho e com o homem que amou.
 
            Não duvidava que Eugénia tivesse razão em relação a Luz e à criança. O único grande pecado que a minha irmã cometera fora por amor e tinha a certeza de que Deus não deixaria de a acolher por isso. Mas Diogo que, como eu, tinha passado a sua juventude a matar outros homens, poderia ele estar junto deles?
 
– Acha mesmo que Diogo está junto de Deus?
– Tenho a certeza – respondeu Eugénia, com um sorriso meigo.
 
            Poucos dias depois do enterro de Maria da Luz e do bebé, D. Miguel partiu para o exílio, conforme o que ficara estabelecido em Évora Monte. Os soldados puderam então voltar para casa. D. Pedro foi generoso com aqueles que tinham lutado do seu lado e alguns receberam recompensas com as quais puderam sustentar-se até encontrar outro meio de subsistência. Uns regressaram para a família – para os seus pais ou mulheres, – outros, tendo perdido os seus lares, resolveram continuar no exército. Outros ainda, desanimados por qualquer motivo, sem sítio para onde regressar e sem vontade de começar uma vida nova, tornaram-se vagabundos e mendigos. Viviam pelas ruelas, esperando às portas das tabernas que os frequentadores lhes dessem algum dinheiro para comer.
            Foi isso que se passou comigo. Sem poder voltar ao Roseiral, com vergonha de pedir novamente asilo à boa tia Francisca, e sem vontade de lutar, continuei por ali, na povoação de Asseiceira, e durante cerca de três meses, vagueei pelas ruas, vivendo das esmolas que me davam sem eu sequer pedir, pois tudo o que eu queria era morrer também, o mais depressa possível. Mas quando eu julgava já que Deus se tinha esquecido de mim, Ele enviou-me um dos seus anjos. Andava eu a vaguear sem rumo quando uma mulher jovem passou por mim. Mas depois de passar, voltou-se, como que reconhecendo-me. Era Eugénia. Julguei que ao ver as minhas roupas gastas, o meu aspecto sujo e descuidado, a barba por aparar, preferisse fazer de conta que não me reconhecera, mas tal não aconteceu. Eugénia voltou para trás e, sem esconder o seu espanto, indagou:
 
– Valha-me Deus! O que lhe aconteceu?
 
            Fiquei sem saber muito bem o que responder.
 
– Porque não voltou para casa?
– A Luz não lhe disse? A nossa casa foi vendida e de qualquer forma, o meu pai já me tinha expulsado de lá. Não cheguei a adquirir casa própria antes da guerra.
– Não teve direito a nenhuma recompensa? Sei que muitos soldados...
– Não sei – interrompi. – Nunca me dei ao trabalho de ir ver...
– Não o interessa?
– Desde as mortes de Diogo e Luz que nada me interessa.
– Não devia falar assim. Pouco conhecia do seu amigo, mas sei que Luz ficaria triste se o ouvisse.
 
            Não respondi. Eugénia disse:
 
– Venha até à minha casa. Há quanto tempo não come uma refeição decente?
– Não... É preferível não ir...
 
            Recusei por cortesia, mas a verdade é que o meu estômago vazio me tentava a aceitar o convite. Além disso, era a primeira vez em muito tempo que um ser humano se dirigia a mim não só para me dar uma esmola sem sequer olhar para a minha cara, mas oferecendo-se para me ajudar por amizade.
 
– Vamos lá – insistiu ela. – Faça-o por mim.
 
            Acabei por deixar que me levasse.
            Eugénia vivia sozinha, numa casa que herdara da avó paterna. Ali tinha vivido com ela, enquanto ela fora viva, e agora estava só. Senti-me um pouco envergonhado por me encontrar ali, esfarrapado, na presença de uma mulher tão corajosa. Eugénia já tinha comido, mas ficou a conversar comigo enquanto eu ingeria a refeição que me oferecera. Ficámos a conversar ainda um bom bocado, até que eu declarei:
 
– Bom, é melhor eu retirar-me. Não sei como lhe agradecer...
– Não vá ainda. Vou aquecer-lhe água para se lavar e barbear. Depois, pode vestir um fato do meu marido. Infelizmente, morreu há algum tempo. Não lhe fazem falta.
– Não quero abusar da sua bondade.
– Por favor. Se o deixasse ir embora nesse estado, sentiria que não tinha sido uma boa cristã.
 
            Eugénia tinha uma maneira de falar que fazia com que desobedecer parecesse uma ofensa, pelo que acedi. Quando terminei e me vi ao espelho, redescobri a minha própria juventude. Já não era um mendigo anónimo. Voltara a ser Pedro Ávila. No entanto, receei já não ser capaz de voltar para a rua. Quando saí do quarto, já vestido e lavado, Eugénia pediu-me que me sentasse e ouvisse o que ela tinha para me dizer. Assim vestido e lavado, já não me sentia envergonhado por aceitar o convite. Já não me sentia um mendigo a usufruir da bondade de uma dama bondosa, mas um amigo.
 
– Pedro, – disse ela – não pode continuar assim. Devia arranjar um lugar para viver... Compreende que não o posso convidar para ficar em minha casa. Se o meu marido fosse vivo, seria diferente, mas assim...
– Oiça, Eugénia... – interrompi, tomando-lhe afectuosamente as mãos. – Estou-lhe eternamente grato pelo que já fez. Não precisa de se preocupar. Agora, devo retirar-me.
– Espere, deixe-me acabar. Como eu dizia, não posso oferecer-lhe um quarto em minha casa, mas conheço uma pequena pensão aqui perto. Não é nenhum luxo, mas pelo menos, é económica.
– Mas eu não tenho com que pagar o alojamento.
– Então, permita-me que lhe empreste o dinheiro.
– Não poderia...
– Por favor.
– Não! Não pode ser! Não estaria certo...
– Pedro, não lhe estou a oferecer nada. Seria apenas um empréstimo.
– Mas sabe que eu não tenho meios com que retribuir.
– O senhor é um liberal, não é? Não são os liberais que defendem que o valor de cada um assenta naquilo que é capaz de produzir com o seu próprio esforço e trabalho? Arranje uma ocupação, Pedro. O meu marido era caseiro. O que sabe o senhor fazer?
– Para ser sincero, acho que não sei fazer nada... Quando saí do Roseiral, tinha apenas dezassete anos. Durante o tempo que vivi em casa da minha tia, no Porto, e na pensão IlhaBela, nos Açores, governei-me com a parte que me coubera da herança da minha mãe. Diogo vivia do dinheiro que Cecília lhe enviava... Possivelmente, a maior parte do seu ordenado. Tudo isso parece agora tão distante... Depois, veio a guerra. Enquanto estivemos no exército, não precisámos de nos preocupar com o nosso sustento. Como vê, nunca aprendi a fazer nada a não ser lutar.
– E a sua herança materna?
– Esgotou-se pouco após o fim da guerra. Já não restava muito. Afinal, a família da minha mãe podia viver sem dificuldades, mas não era propriamente rica.
– Seja como for, o facto de nunca ter aprendido um ofício não significa que não seja capaz de fazer nada. Tenho uma ideia: antes de mais nada, trate de saber se teve ou não direito a alguma recompensa pelo seu esforço de guerra e se é alguma coisa que se veja. Talvez consiga comprar uma pequena propriedade, ou se não der para isso, talvez possa trabalhar na propriedade de outra pessoa, como o meu falecido marido. Bem sei que para quem nasceu em berço de ouro, a perspectiva não deve ser muito atraente, mas não é vergonha nenhuma. Pelo menos, não será um pedinte.
 
            De início, não dei muito crédito à proposta de Eugénia, pois não achava que fosse realmente capaz de superar todas as dificuldades. No entanto, não tinha nada a perder, pelo que resolvi tentar. Comecei por aceitar o empréstimo e hospedar-me na pensão recomendada. Depois, fui saber se tinha ou não direito a alguma recompensa pela minha participação na guerra. Não foi fácil, pois passara já bastante tempo e os responsáveis estavam na dúvida se a minha reclamação ainda era válida. Acabaram por decidir que sim. Podia optar por uma quantia em dinheiro ou uma pequena propriedade. A princípio, pensei que a propriedade seria a escolha mais acertada, mas depois de a visitar, concluí que não valia a soma que receberia em dinheiro e que faria melhor em aceitar o dinheiro e comprar um terreno escolhido por mim.
            O terreno que comprei não era muito grande, mas servia para o que eu queria: construir uma casa onde viver e ter terra para plantar e colher o suficiente para sobreviver. Quando a colheita era favorável, pagava a um ou dois rapazes para que levassem o que sobrava para vender no mercado. E assim consegui dinheiro para pagar a Eugénia e até para satisfazer algumas das minhas necessidades mais supérfluas. Uma vez paga a minha dívida, passei a frequentar regularmente a casa de Eugénia, pois tudo o que fizesse me parecia pouco para expressar a minha gratidão e amizade.

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