quinta-feira, 25 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo XVI (PROVISÓRIO)

Ao comentar o facto de aquela guerra nos obrigar a viver cada dia como se fosse o último, Diogo estava longe de imaginar como o seu próprio fim estava próximo. Poucos meses após esse dia, os reforços chegaram e o duque pôde, finalmente, lançar o tão ansiado ataque sobre as forças inimigas. Apesar de não saberem que esperávamos reforços e de ponderarem mesmo a hipótese de já termos abandonado a região, os miguelistas haviam preparado uma excelente defesa e a batalha que nesse dia se travou só terminou ao anoitecer, quando tendo perdido já os mais importantes oficiais, os realistas não encontraram outro caminho que não a rendição.
            Mas essa vitória, a vitória que marcaria o triunfo liberal sobre o regime de D. Miguel e o fim da guerra que assolara o país, seria para mim – e de resto, para muitos outros – uma amarga vitória.
            A ordem de ataque veio logo a seguir aos primeiros raios de sol e, conscientes de que desta vez éramos nós que estávamos em vantagem, combatemos encarniçadamente, animados pela fé na impossibilidade de uma derrota. Mas mesmo quando se obtêm vitórias, é impossível que numa batalha não tombem homens de ambos os lados.
            Diogo e eu lutámos lado a lado o dia todo e começava já a escurecer quando, ao fazer um movimento arriscado, Diogo foi atingido na região abdominal. Soltou um gemido quase inaudível e caiu, encolhido sobre o ferimento.
 
– Diogo! – exclamei, assustado.
 
            Gritei para alguns soldados que protegessem a minha retaguarda e, o mais depressa que pude, corri até ele, arrastando-o depois para trás das linhas da frente, para que não ficasse tão exposto, agora que não se podia defender. Tinha a camisa manchada de sangue, o rosto excessivamente pálido e coberto de bagas de suor. Estava consciente e, pelo modo como contraía as feições, percebi que a dor devia ser insuportável.
 
– Diogo...
– Não te preocupes comigo – disse ele. – Eu fico bem... Continua a lutar...
 
            Mas tudo o que eu queria era que aquela batalha terminasse para eu poder levar Diogo ao hospital. Confesso que cheguei a desejar que o duque ordenasse a retirada, embora soubesse que isso era impossível, uma vez que estávamos em vantagem. A partir desse momento, não foi mais em defesa da minha vida ou da causa liberal que eu lutei. Só me preocupava em manter Diogo seguro até que o combate terminasse. Quando os miguelistas, finalmente, se renderam, com a ajuda de Luís, um outro soldado, transportei Diogo até ao convento. Quando chegámos, já vários soldados tinham trazido outros homens, e as raparigas estavam todas ocupadas. Eugénia, que nos viu chegar, ajudou-nos a deitar Diogo numa das camas da divisão onde se encontrava. Luís partiu para ir buscar mais feridos.
 
– Onde está Maria da Luz? – perguntei a Eugénia.
– Está naquele quarto – respondeu ela, apontando uma das portas que davam para outra divisão onde se encontravam mais feridos. – Quer que vá chamá-la?
– Não, Eugénia, obrigado. Eu vou lá.
 
            Entrei no quarto que Eugénia me indicava e vi a minha irmã a cortar a manga da camisa do soldado da cama do fundo, para que o cirurgião pudesse tratar do braço ferido.
 
            Luz virou-se ao ouvir os meus passos. Sorriu ao ver que não me acontecera nada, mas logo empalideceu ao perceber que se Diogo não estava comigo, era porque algo de errado se passara. Olhei para o ventre que albergava o meu futuro sobrinho. A gravidez da minha irmã já ia bastante avançada. De início, Luz enfrentara alguns problemas com as Irmãs, mas a Madre Superiora tinha-se mostrado compreensiva e acabara por permitir que ela ficasse. Desde que Diogo fora atingido que eu me debatia com a questão de como dar a notícia à minha irmã de maneira a que o choque não fosse prejudicial nem para ela, nem para a criança. Maria da Luz terminou o que estava a fazer e veio ao meu encontro.
 
– Pedro... – disse, com voz trémula. – Onde está Diogo?
– Diogo foi ferido – respondi. – Vem, eu levo-te até ele.
 
            Luz seguiu-me em silêncio até à cama de Diogo, que respirava aceleradamente. Maria da Luz acariciou-lhe o rosto e ele abriu os olhos.
 
– Luz...
– Não fales – ordenou ela.
 
            Luz desabotoou-lhe a camisa e as calças e o aspecto do ferimento pareceu deixá-la apreensiva.
 
– Então? – indaguei. – Achas que o podem pôr bom?
 
            Maria da Luz afastou-se da cama de Diogo e fez-me sinal para que a seguisse. Em seguida, declarou:
 
– Não é a primeira vez que vejo um caso como o de Diogo. Será muito difícil o cirurgião conseguir extrair a bala e mesmo que consiga... Ele já perdeu tanto sangue...
– Que estás a tentar dizer? Que ele vai morrer?
– Não sei... não sei... – respondeu ela, parecendo completamente perdida.
– Onde está o cirurgião? – perguntei.
– Não sei...
– Eu levo-o até ele – declarou Eugénia, que assistira à conversa.
 
            Eugénia levou-me até ao quarto onde o cirurgião se encontrava. Este tratava de um soldado que recebera um ferimento numa perna. Reconheceu-me como sendo o irmão de uma das enfermeiras e sorriu ao ver-me aproximar.
 
– Olá, Pedro. Anda à procura da sua irmã?
– Não, doutor. Preciso da sua ajuda. Diogo...
– Diogo foi ferido? – interrompeu. – Deixe-me só acabar de ligar esta perna. Atendê-lo-ei imediatamente.
 
            Os poucos segundos que o Dr. Rocha demorou a ligar a perna do soldado pareceram-me uma eternidade. Finalmente, terminou e declarou:
 
– Vamos lá ver o seu amigo. Onde é que ele está?
 
            Conduzi-o à divisão onde Diogo se encontrava. Embora consciente, Diogo mantinha os olhos fechados e, de vez em quando, movia-se e soltava um pequeno gemido. Maria da Luz já desinfectara o ferimento e tentava agora controlar a hemorragia, mas sem grande resultado. O cirurgião aproximou-se, examinou por momentos o ferimento e declarou, com ar grave:
 
– É quase certo que a hemorragia interna é muito grave. Não vos quero enganar. Em circunstâncias normais, os casos como o de Diogo nem sequer passam pelas minhas mãos por serem considerados casos perdidos e porque enquanto eu me ocupo com um caso assim, poderia estar a cuidar de outros, com ferimentos curáveis. Mas Diogo tornou-se um amigo pessoal nos últimos tempos e é o pai do filho de Maria da Luz, cuja colaboração tem sido preciosa... Apesar de não crer na possibilidade de ele se recuperar, tentarei extrair a bala e... rezarei por um milagre.
 
            O Dr. Rocha estava à vontade para falar assim, pois o estado semiconsciente de Diogo não lhe permitia entender completamente as nossas palavras. Ao saber que só por milagre – como o próprio médico dissera – Diogo poderia sobreviver, senti-me perdido. Se Diogo morresse – Diogo, por cuja amizade, no fundo, eu me tornara liberal – seria como se, apesar de os miguelistas se terem rendido, a guerra nunca tivesse acontecido, como se nada tivéssemos conquistado. Veio-me à memória o tempo em que era criança e tudo o que eu queria era poder partilhar com Diogo a ceia de Natal. No fundo, fora por coisas tão simples como essa que eu tinha feito parte daquela guerra: para que Diogo e eu pudéssemos ser verdadeiramente amigos e não mais patrão e criado. Agora que Diogo se encontrava estendido naquela cama, à espera da morte, tudo parecia ter sido em vão. Nunca teríamos oportunidade de usufruir juntos daquilo por que tínhamos lutado.
            Mas ocorreu-me que estava a ser egoísta. Afinal, Maria da Luz tinha razões muito mais fortes para se desesperar e no entanto, ali continuava, inquebrantável, quase não permitindo que lhe dirigissem palavras de conforto.
 
– Maria da Luz, – disse o cirurgião – preferia que não me assistisse enquanto procedo à extracção da bala. Bem sei que nunca deixou que as emoções atrapalhassem o seu trabalho enquanto me ajudava, mas como compreende, neste caso, preferia que fosse outra pessoa a assistir-me.
 
            Luz acatou o conselho do cirurgião, mas insistiu em ficar presente durante a operação. O Dr. Rocha aproximou-se de Diogo.
 
– Diogo, consegue ouvir-me?
 
            Diogo abriu os olhos e fez que sim com a cabeça.
 
– Vamos extrair-lhe essa bala.
– É inútil...
– Não quero enganá-lo. É bem possível que tenha razão, e uma vez que o processo será doloroso, parece-me que deve ser o Diogo a decidir se quer ou não submeter-se a ele.
 
            Diogo olhou-me e em seguida, fitou Luz, cujo olhar parecia suplicar que não se entregasse à morte sem, pelo menos, tentar. Com bastante dificuldade, Diogo respondeu:
 
– Não vou desistir sem lutar... por medo de não suportar... o sofrimento.
 
            Após Diogo ter dado o seu consentimento, pedi a dois dos nossos companheiros de armas que me ajudassem a segurá-lo enquanto o cirurgião trabalhava. Luz pediu a Eugénia que assistisse o Dr. Rocha, pois embora todas as outras fossem muito eficientes, a minha irmã não confiava em mais ninguém para cuidar de Diogo. Geralmente, quando era necessário proceder ao tipo de intervenção a que Diogo ia ser submetido, procurava-se entorpecer os sentidos do doente através de bebidas fortes, mas no caso de Diogo, não era possível esperar tanto tempo, pelo que depois de lhe ter colocado um rolo de ligaduras não utilizadas entre os dentes, o Dr. Rocha começou imediatamente a trabalhar.
            De início, Diogo suportou a dor cerrando os dentes e os punhos. Os lábios tremiam-lhe e o suor escorria-lhe da testa para os olhos. O Dr. Rocha também transpirava. Por instantes, tive a certeza de que Diogo ia sobreviver, de que Deus não permitiria que todo o nosso esforço e todo o tormento de Diogo fossem em vão. Mas Diogo gemia agora e contorcia-se violentamente. Os dois soldados e eu tivemos dificuldade em mantê-lo quieto. Ao ver o sofrimento de Diogo, Luz deixou escapar um grito de aflição e precipitou-se para o Dr. Rocha, a fim de o impedir de continuar. Felizmente, Eugénia tinha as mãos livres e segurou-a. Luz continuou a debater-se e a gritar, e os seus gritos estavam a ter em mim o efeito de me fazer perder a força de que precisava para segurar Diogo. Sentindo a voz fraquejar, pedi:
 
– Levem-na daqui, por favor, levem-na daqui...
 
            Duas outras enfermeiras que se ali se encontravam tiraram-na dos braços de Eugénia e obrigaram-na a sair da sala, apesar dos seus protestos.
            Quando o cirurgião conseguiu, finalmente, arrancar a bala, os olhos de Diogo estavam vidrados. Perdera a força para se debater, mas continuava a gemer baixinho. Quando acabou o seu trabalho, o Dr. Rocha agradeceu aos soldados, que se retiraram depois de me comunicarem os seus votos de melhoras para Diogo.
 
– Tudo o que eu podia fazer está feito – disse o cirurgião.
– Pela forma como fala, diria que não há grande esperança.
– Sabia isso antes da operação.
– Sim... Esforço-me por aceitar, mas não consigo deixar de ter esperança.
– Nem deve. O poder que eu tenho para salvar é limitado, mas para Deus não há limites.
 
            O cirurgião deixou-nos para ir atender outros casos e Eugénia também se foi ocupar de outros doentes. Aproximei-me de Diogo, que continuava a gemer de forma quase imperceptível. Coloquei a minha mão sobre a dele, para ver se reagia. Diogo abriu os olhos e voltou a fechá-los. Respirava com dificuldade. Lembrei-me que Maria da Luz ainda esperava o resultado da operação, pelo que fui procurá-la. Encontrei-a num banco, no jardim do convento, acompanhada por uma das Irmãs. Tinha os olhos vermelhos de chorar, mas estava bastante mais calma do que quando tentara interromper o Dr. Rocha. Ao avistar-me, ergueu-se e indagou:
 
– Então?
– O Dr. Rocha não nos deu muitas esperanças... mas referiu que Deus pode fazer tudo. Não é assim, Irmã?
– Deus sabe o que faz – respondeu ela. – Ainda que por vezes não entendamos e por isso soframos.
– Tenho a certeza de que sobrevive...
– Sim – respondeu Luz. – Tu tens a certeza e hás-de tê-la até ao fim. O teu coração é de soldado e esses agarram-se à vida – à sua e à dos outros – até que ela se extinga completamente. Mas eu sou mulher, sou enfermeira e amo Diogo... E sei quando deixa de ser sensato ter esperança.
– Vou deixá-los a sós – disse a Irmã.
 
            Antes de se retirar, disse ainda a Maria da Luz:
 
– Lembre-se do que lhe disse. O que quer que aconteça, Deus terá feito o melhor para Diogo.
 
            Preferi não responder, pois receava não poder ser sincero sem ofender a Irmã.
 
– Vamos – disse Luz. – Quero ver Diogo.
 
            Segui Luz até ao quarto onde ele se encontrava. A minha irmã enxugou-lhe o suor da testa e do rosto. Achei que devia deixá-los a sós e fiz menção de me retirar, mas a minha irmã impediu-me.
 
– Fica – disse.
 
            Diogo estava consciente mas ainda esgotado da operação. Um soldado entrou nesse momento e segredou-me uma coisa ao ouvido. Em seguida, retirou-se.
 
– Diogo – chamei.
 
            Ele sabia, provavelmente, que ia morrer. Era justo que soubesse que a sua causa triunfara. Diogo fitou-me, à espera de ouvir o que eu tinha para dizer.
 
– D. Miguel rendeu-se. Finalmente, a Carta vai ser uma realidade.
 
            Diogo sorriu com uma expressão que me pareceu de alívio.
 
– Então... – disse – a minha morte... não terá sido... em vão.
– Não fales assim – pediu Luz.
 
            Diogo voltou a sorrir, ergueu um braço e fez uma carícia no rosto de Luz. Depois, poisou a mão sobre o ventre da minha irmã.
            O sofrimento do meu amigo prolongou-se ainda por mais dois dias e duas noites, durante os quais nem eu nem Luz dormimos mais de quatro ou cinco horas, pois estivemos sempre junto ao seu leito. Eu na esperança de um milagre e Luz tentando fazer com que os últimos momentos do pai do seu filho fossem tão cómodos quanto possível. Quando Diogo, por fim, expirou, Luz soluçou durante horas com a cabeça encostada ao meu ombro. Eu deixei-a chorar, mas estava demasiado revoltado para conseguir encontrar palavras de consolo.
 
– Tenho medo por ti – declarou ela, ainda encostada ao meu ombro.
– Não há razão para isso. A guerra acabou. Não me acontecerá o mesmo.
– Não é disso que falo. Diogo contou-me que tinhas planos para o futuro. Que querias trabalhar para conseguir comprar uma propriedade. De resto, era o que ele pretendia fazer também, comprar um terreno modesto onde pudéssemos construir uma casa e criar o nosso filho... Mas agora que ele morreu, sinto-te tão sem vontade de viver...
 
            Percebi onde Luz queria chegar. A guerra terminara e se ainda ali estávamos, era apenas porque D. Pedro achara melhor não desmobilizar as tropas enquanto não obtivesse a rendição formal de D. Miguel. De facto, como Luz dissera, ao sairmos do Roseiral, tanto eu como Diogo tínhamos planos para o futuro. Para quando aquilo por que nós íamos lutar fosse já uma realidade. Mas à medida que o tempo passava, eu fora ficando tão embrenhado na guerra que praticamente esquecera que havia uma vida para além dela. De resto, agora que Diogo estava morto, nada daquilo por que tinha lutado parecia ter importância. Na verdade, cheguei a desejar nunca ter saído do Roseiral, nem mesmo ter ouvido falar na Carta Constitucional de D. Pedro, pois talvez assim Diogo ainda estivesse vivo. Luz deve ter percebido o que eu estava a sentir, pois tomou as minhas mãos e disse:
 
– Não te deves arrepender de nada. Diogo lutou por aquilo em que acreditava e teria lutado mesmo que tivesses ficado para trás. Eu sofro tanto como tu – talvez mais – mas estou contente porque na sua luta ele te teve sempre a ti ao seu lado, e eu sei como isso era importante para ele. Além disso, os dias que aqui vivi convosco foram os mais felizes da minha vida. Sei que tu também foste feliz, e Diogo não o foi menos do que nenhum de nós. Tenho a certeza de que ele, onde quer que esteja, também não se arrepende de nada.
– No fundo, sei que tens razão – disse. – Mas não posso deixar de sentir a revolta...
– E julgas que não a sinto também? Mas sei que Diogo quereria que eu fosse forte para poder criar o nosso filho. E tenho a certeza que também quereria que tu continuasses a tua vida como se ele fosse vivo.
– Estou tão cansado... – respondi, inclinando a cabeça para trás, como que em busca de um apoio inexistente.
– Devias chorar. Far-te-ia bem.
– É engraçado – respondi, sorrindo com nostalgia. – Diogo disse-me um dia que devia aprender a chorar. É curioso que tu me digas o mesmo.

Sem comentários:

Enviar um comentário