domingo, 21 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo XV (PROVISÓRIO)

Depois de terem distribuído tudo o que traziam, as raparigas recolheram-se ao convento, mas regressaram no dia seguinte e todos os dias desde então, com mais alimentos e água fresca. Não era, no entanto, o que elas traziam que fazia com que todo o acampamento ansiasse pela sua vinda. Era pelo seu sorriso, pela sua leveza, pela harmonia que pareciam transmitir a tudo o que as rodeava. Os rapazes passaram a encará-las como uma espécie de amuleto, como qualquer coisa que era de bom augúrio para as nossas tropas. Criaram-se verdadeiros laços de amizade entre nós e as enfermeiras do convento, e cedo os rapazes começaram a perceber que, quer da parte de Diogo, quer da de Maria da Luz, havia um amor inconfessado, e todos conspirávamos para os juntar. No entanto, Diogo negou sempre qualquer sentimento que não amizade e dedicação por Luz e a minha irmã também nunca confessou abertamente o que sentia. Mas numa noite em que eu estava de sentinela, vi um vulto que vinha dos lados do convento dirigir-se ao abrigo que, geralmente, eu partilhava com Diogo. Compreendi de imediato que se tratava de Maria da Luz, que finalmente decidira ceder – ou talvez apenas não tenha conseguido resistir mais – aos seus sentimentos. Apesar de toda a estima que tinha por Diogo, receei pela reputação de Maria da Luz e corri em direcção ao abrigo, a fim de os impedir de praticar uma acção irreflectida. Mas ao ouvir a voz segura da minha irmã, percebi que ela estava, com certeza, ciente de todos os riscos, e que a decisão de correr ou não esses riscos só a eles os dois pertencia.
 
– Diogo, – disse – o facto de nunca me teres pedido que fosse contra a vontade do meu pai e de nunca me teres pedido que sacrificasse tudo aquilo que eu teria de deixar para trás para estar contigo serviu apenas para me fazer amar-te e respeitar-te ainda mais, mas agora sou eu que te peço: se não me amas, diz-me agora e eu voltarei para o sítio de onde vim, mas se é verdade aquilo em que todos parecem acreditar, se é verdade que me amas, não digas nada e deixa-me ficar.
 
            Não foi com surpresa que constatei que Diogo se mantinha em silêncio e decidi regressar ao meu posto.
            Poucos dias depois, o duque, irritado com a demora dos reforços, resolveu não esperar mais e lançar o ataque com as tropas que tinha. Infelizmente, tal imprudência custar-nos-ia caro, pois não só nos vimos forçados a bater em retirada como perdemos ainda mais homens. Uma vez denunciada a nossa presença – e sabendo os absolutistas que se encontravam em vantagem – o nosso batalhão não foi poupado e tivemos de mudar a localização do acampamento para evitar que eles nos aniquilassem. Por um lado, a mudança foi positiva, pois ficámos ainda mais perto do convento e era mais fácil transportar os feridos. Quando essa primeira batalha terminou, os soldados que tinham escapado incólumes ajudaram a levar os feridos para o convento, mas apenas os casos mais graves, pois o espaço não chegava para alojar todos os que precisavam. Os que tinham ferimentos menores recebiam a assistência das raparigas que se deslocavam até ao acampamento.
            Luz provou ser capaz de assistir sem pestanejar aos casos mais complicados, incluindo ajudar o cirurgião na extracção de balas, por isso, quando aquele incidente se deu, percebi imediatamente que algo se passava. Maria da Luz estava a ajudar o cirurgião a limpar o ombro chumbado de um soldado e eu e Diogo, que o tínhamos trazido, estávamos a assistir, para o caso de a nossa ajuda ser necessária. A ferida, embora bastante sangrenta, não inspirava cuidados, mas durante o processo, Luz pareceu cambalear. O cirurgião ainda tentou ampará-la, mas tinha as mãos ocupadas e Maria da Luz acabou por cair nos braços de Diogo. Não chegou, no entanto, a perder os sentidos; fora apenas uma tontura. Diogo fê-la sentar-se e indagou.
 
– Luz, sente-se bem?
– Estou só um bocadinho cansada.
– Vá descansar – aconselhou o cirurgião. – Quando acabar este serviço, já a vou examinar.
– Não é preciso. É só um pouco de cansaço.
 
            Diogo e eu levámos Maria da Luz para o pequeno jardim do convento e Diogo disse para a minha irmã:
 
– Luz, parece-me que agora é um bom momento para contar o que se passa ao teu irmão.
 
            Era a primeira vez que Diogo a tratava por tu na minha presença e isso fez-me perceber que o assunto era sério. Luz assentiu com um gesto de cabeça e, pegando na mão da minha irmã, Diogo revelou:
 
– Pedro, a tua irmã espera um filho meu.
 
            A revelação não me apanhou completamente desprevenido, pois eu já receara que tal tivesse acontecido e o pequeno incidente ocorrido há minutos contribuíra para confirmar as minhas suspeitas.
 
– Não nos julgues mal, meu irmão – interveio Maria da Luz.
– Não tínhamos a intenção de te esconder o facto. De qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, terias de saber. Apenas esperávamos o momento mais oportuno para te dar a notícia.
– Bom, para ser franco, já tinha desconfiado. Fico feliz pela vossa felicidade.
– Então, agora que já sabes, ajuda-me a convencê-la a voltar para casa, pois ainda não consegui fazer com que ela me dê ouvidos.
– Diogo tem razão. Não podes esperar o nascimento da criança aqui, é uma loucura.
– Bem sabem que não posso contar com o apoio de D. José Ávila.
– Luz, bem sei que o teu pai te repeliu do seu convívio, mas talvez se soubesse da tua situação...
– Expulsar-me-ia de novo por me ter perdido, especialmente, se soubesse de quem é o meu filho.
– Diogo tem razão, minha irmã. Talvez tenhas razão ao dizer que o pai não te aceitaria, mas tenho a certeza de que a tia Francisca te receberia, e seria só até Diogo te ir buscar. Os realistas já não podem resistir por muito mais tempo. Aqui, não estás segura. Foste tu mesma que nos contaste que algumas das raparigas foram assassinadas.
– Basta! Não vou regressar! Não precisam de se preocupar! Estou tão segura aqui como no Porto. Ou por acaso julgam que só aqui é que há guerra? O meu filho não vai nascer aqui, no meio de um campo de batalha. Quando o meu tempo estiver no fim, pedirei abrigo à tia Francisca, mas até lá, há muita coisa que eu ainda posso fazer para ajudar a causa liberal.
 
            E como que para nos provar que seria inútil continuar a argumentar, Maria da Luz voltou para dentro do convento, deixando-nos sozinhos. Diogo declarou então:
 
– Eu amo a tua irmã.
– Eu sei.
– Quando tudo isto acabar, vou fazer dela minha mulher. E não é só por ela esperar um filho meu. Jamais lhe teria tocado antes de nos casarmos se não tivéssemos de viver cada dia como se fosse o último.
– Eu sei, meu bom amigo. Como disse, estou feliz por vós. Para te dizer a verdade, fico mais descansado assim do que se tivesse de a ver casada com Álvaro Dias.

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