quinta-feira, 11 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo XIII (PROVISÓRIO)

– Cercados? – berrou o capitão, em tom capaz de fazer estremecer toda a cidade.
– Sim, as tropas absolutistas cercaram-nos.
– Então, era essa a ideia deles!
 
            Durante meses, permanecemos sitiados. Os absolutistas, certos de que os nossos homens acabariam por se render, mantinham o bom humor e não nos dificultavam a vida mais do que aquilo a que os obrigava o dever militar. Por vezes, eram eles próprios que, às escondidas dos seus oficiais e mediante pequenos subornos, faziam chegar até nós os mantimentos necessários à nossa sobrevivência. Olhavam-nos como crianças rebeldes, mas não necessariamente perigosas, cujas traquinices eles toleravam e até olhavam com certa condescendência.
            No entanto, o tempo provar-lhes-ia que estavam errados ao pensar que a nossa vontade seria facilmente abalada. Nem as armas, nem a fome, nem a falta de condições puderam vergar aqueles cuja causa era a única justa. Tínhamos vindo para vencer ou morrer, mas nunca para nos entregarmos nas mãos dos realistas. Percebendo isso, os nossos inimigos tornaram-se impacientes e, contra aqueles que tinham julgado inofensivos, usavam agora medidas tão duras como se o nosso exército fosse o mais difícil de derrotar de toda a História. As nossas comunicações com o resto do país foram sendo cada vez mais dificultadas, e os miguelistas não hesitavam em mandar executar os seus próprios soldados, se suspeitassem de qualquer relação connosco. Alguns dos nossos homens, privados de alimentos e de água, tombaram sem vida, mas esses foram ainda os que tiveram mais sorte, pois outros houve que enlouqueceram. Alguns, numa atitude desesperada, procuraram iludir o cerco e fugir. A maioria acabou estendida no meio da cidade, numa poça de sangue. Mas apesar de tudo, alguns tiveram êxito. Chegava a passar quase uma semana sem que tivéssemos mais que dois pedaços de pão para comer ou um trago de água para beber. Era a sede que me causava mais sofrimento e em certos dias, chegava a delirar. Pensava ver a minha mãe, julgava que vinha buscar-me para junto dela e sorria-lhe, mas Diogo, apesar de também enfraquecido pelas privações, mantinha um espírito mais forte e impedia-me de seguir o seu chamado.
 
– Não é a tua mãe que estás a ver – dizia, sacudindo-me, como que para me despertar. – Não chegou a tua hora. Reage!
 
            E eu reagia como que por instinto, como se a sua voz fosse a voz de um irmão mais velho a quem eu não me atrevia a desobedecer.
            O nosso exército parecia ter-se transformado num exército fantasma. Apenas os mais fortes sobreviviam e mesmo esses, estavam reduzidos a uma sombra daquilo que eram ao chegar.
            Nos finais de Junho de 1833, começaram a ouvir-se boatos segundo os quais o Conde de Vila Flor, agora Duque da Terceira, estaria a preparar-se para invadir Lisboa e conquistar a capital às forças inimigas. Tendo necessidade de reforçar as defesas junto a essa cidade, os realistas viram-se obrigados a afrouxar o cerco, e as surtidas do nosso lado começaram a ter mais sucesso. Diogo e eu esperávamos ansiosamente que nos enviassem numa dessas surtidas, não tanto para escapar à miséria imposta pelo cerco que, de resto, começava a abrandar, mas porque havia novos locais de acção e era lá que nós queríamos estar, a ajudar os nossos a conseguir a vitória.
            Mais uma vez, foi pela mão do Duque da Terceira que voltámos a participar activamente na luta contra o poder opressivo dos miguelistas. De todos os lados do país, unidades inteiras atendiam ao apelo do duque para que se lhes juntassem e o ajudassem a arrancar a capital ao domínio do inimigo.
            Quando eu e Diogo, com mais cerca de cento e cinquenta homens, deixámos o Porto, o cerco ainda não tinha sido oficialmente levantado, e apesar de as forças inimigas serem já incapazes de controlar todos os nossos movimentos, não foi sem alguma dificuldade que saímos da cidade.
            Mas as maiores dificuldades surgiriam durante a marcha para Lisboa. Não só tivemos de lidar, inúmeras vezes, com pequenos grupos de absolutistas – quer militares, quer civis – como presenciámos a desolação que a guerra estava a provocar pelas diversas povoações do país. Colheitas destruídas por ódio e vingança, famílias separadas, casas pilhadas e arrasadas, homens do povo, mulheres e crianças maltratados ou mesmo assassinados, tudo isto nós encontrámos à nossa passagem.
            Recordo-me de uma pequena aldeia e de uma casinha onde encontrámos uma mulher e o seu filho de sete, oito anos de idade, a chorar sobre o cadáver do marido e do pai, respectivamente. Esqueci o local exacto onde isso se passou, mas nunca consegui apagar da memória a dor estampada no rosto de ambos. Nessas alturas, tudo o que eu desejava era que tivéssemos chegado um pouco mais cedo para impedir que tais tragédias se consumassem. Queria consolá-los, mas já tinha experiência suficiente para saber que as palavras de um estranho, ainda que de um estranho que lutava pela causa que havia de fazer justiça a esse tipo de crueldade, pouco conforto traziam àqueles que tinham acabado de perder quem mais amavam.
            Ao depararem-se com a aldeia destruída, as portas arrombadas, cadáveres estendidos pelas ruas; os homens que formavam o pequeno exército de que eu e Diogo fazíamos parte pararam de marchar e olharam à sua volta, horrorizados. Pelo que se ouvia da boca do povo, um grupo de civis realistas massacrara a aldeia, convencido de que os seus habitantes davam guarida a prisioneiros liberais. Não era a primeira vez que encontrávamos um cenário semelhante, mas há coisas a que a vista humana nunca se habitua. Foi então que, no meio do silêncio doentio que se apoderara daquela aldeia, ouvimos o choro desesperado da mulher, que se encontrava debruçada sobre o corpo do marido, e do garotinho, que chorava a morte do pai. A casa tinha as janelas partidas e a porta deitada abaixo, pelo que pudemos vê-los. Reparei, então, que duas lágrimas rolavam pelas faces do meu amigo.
 
– Estás bem? – indaguei.
– Há treze anos, aquele rapazinho assustado era eu...
 
            Durante alguns instante, todo o exército se manteve mudo e imóvel. Era impossível não sentir que devíamos ajudar aquela povoação, enterrar as suas vítimas, cuidar dos seus feridos, proteger os que haviam ficado sem tecto, mas sabíamos que era impossível atender a todos e que seria mais útil que seguíssemos o nosso caminho e destruíssemos o poder realista antes que este fizesse novas vítimas.
            Quando, a 24 de Julho desse mesmo ano, o Duque da Terceira marchava sobre Lisboa, já nós estávamos com as suas tropas, e foi sob o seu comando que Diogo e eu vivemos o resto da guerra.
            Durante o tempo em que andámos em campanha, Diogo e eu fizemos novos amigos e perdemos novos e velhos amigos, combatemos debaixo de chuva e de calor intenso, conhecemos grandes vitórias e amargas derrotas, presenciámos a destruição e os horrores da guerra. A maior parte das vezes, nada havia que pudéssemos fazer, mas sempre que as circunstâncias o permitiam, procurávamos trazer uma palavra de conforto às vítimas, ou, pelo menos, ajudá-las a enterrar os seus mortos. Sob a chefia do Duque, vencemos os realistas em diversos pontos do país, enquanto que noutros locais, outros grandes chefes militares, como o Duque de Saldanha, faziam o mesmo.
            Mas a guerra começava a operar em mim uma profunda transformação e cada vez me parecia mais difícil controlar a sensação de náusea que me assaltava sempre que era forçado a ver sangue humano derramado, sobretudo, se era o sangue de inocentes. Inúmeros civis, de ambas as facções, haviam já perdido a vida, e aqueles por cujos direitos eu lutava eram os que acabavam por sofrer mais. Comecei a sentir que talvez toda aquela guerra fosse inútil e que talvez as pessoas que eu pretendia defender se encontrassem em melhor situação se a guerra nunca tivesse rebentado. Por vezes, no campo de batalha, quando disparava quase maquinalmente contra o inimigo, tudo o que eu queria era fugir e gritar com todas as forças da minha alma, de forma a libertar o meu peito da estranha opressão que se apoderara dele. Diogo disse-me um dia que devia aprender a chorar mas, nessa altura, o meu orgulho impedia-me de mostrar quaisquer sinais de fraqueza, mesmo quando estava só.

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