quarta-feira, 3 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo X (PROVISÓRIO)

Lançámos âncora na manhã do dia 16. O nevoeiro dificultara os últimos dias de viagem, mas conseguimos atracar sem problemas. Recordo-me do frio intenso que se fazia sentir. Naquele dia, fazia-se sentir um raro frio gelado na Ilha Terceira mas a partir daí, era principalmente a humidade que nos tornava, a cada momento, conscientes da nossa condição de continentais. Reunidos no convés, todos os passageiros esperavam, impacientes, batendo os pés e esfregando as mãos para afastar o frio, pela sua vez de desembarcar.
            Uma vez fora do barco, Diogo e eu sentimo-nos algo desorientados. Sabíamos que tínhamos de encontrar um lugar para ficar, mas não fazíamos ideia de por onde começar a procurar.
 
– O melhor que temos a fazer é encontrar um trem que nos deixe em alguma pensão.
 
            Diogo não teve tempo de responder, pois mal eu acabara de falar, uma voz conhecida surgiu por trás de nós e declarou:
 
– Suponho que não têm onde ficar...
 
            Diogo e eu voltámo-nos, surpreendidos. Era Rodrigo. Ainda não o tínhamos visto naquela manhã.
 
– Aceitariam uma sugestão?
– Claro.
– Então, venham. Lá adiante, naquela rua, costumam passar muitos trens.
 
            Seguimos Rodrigo e minutos depois, estávamos dentro de uma carruagem, com as nossas respectivas bagagens.
 
– Para a Rua da Capela! – exclamou Rodrigo.
– Afinal, para onde nos leva? – indagou Diogo quando a carruagem começou a andar.
– Para a pensão IlhaBela. Vão ver como para um liberal é um paraíso.
– Ah, sim? – perguntei, pouco convencido. – E porquê?
– Porque os donos são liberais e a clientela é escolhida a dedo. Na verdade...
 
            Rodrigo hesitou, não certo de ser prudente revelar tudo de uma vez.
 
– Na verdade, o quê? – indagou Diogo.
– Bom, suponho que não vale a pena fazer mistério por mais tempo. Os hóspedes da pensão são quase todos liberais. Na maior parte, são mesmo soldados, mas também lá há civis.
 
            Passou-me naquele instante pela ideia que Rodrigo poderia ser um dos soldados das tropas de Vila Flor.
 
– Então, você é...
 
            Rodrigo pareceu ter adivinhado o meu pensamento, pois sorriu e, sem que eu concluísse a pergunta, respondeu:
 
– Sim, faço parte das tropas do conde.
– Porque não nos disse isso no barco? – quis saber Diogo.
– Bem, porque a verdadeira razão por que eu estava a bordo do Esperança era para escolher, de entre todos os refugiados que lá estivessem, dois recrutas. E se eu vos dissesse, o vosso comportamento poderia já não ser verdadeiro.
– Então, fomos nós os escolhidos?
– Exactamente. Quer dizer, se estiverem interessados. Mas como me parecem tão dedicados à causa, calculei que estivessem.
– É claro que estamos! – exclamou Diogo. – A nossa intenção era mesmo alistar-nos, mas nunca pensei que fosse tão fácil...
– E não é. Há centenas de homens que se alistam e acabam por nunca ter a oportunidade de lutar. E é uma pena, porque provavelmente, muitos são soldados tão bons e leais como aqueles que lutam. Mas a verdade é que Vila Flor tem uma política muito rígida, para evitar que espiões do lado inimigo se infiltrem e deitem tudo a perder.
 
            Podia ver, pela expressão do meu amigo, que Diogo estava radiante com a ideia de ir fazer parte das tropas do conde. Quanto a mim, embora a possibilidade de lutar pela Carta Constitucional também me fosse bastante cara, não me sentia completamente satisfeito. Havia um pormenor que me incomodava. Apesar de a razão me dizer que Rodrigo não me teria escolhido entre os passageiros do Esperança se não confiasse na minha lealdade e na minha capacidade e coragem para ser um bom soldado, pressentia que, no fundo, ele continuava a ver em mim o menino mimado, o filho de D. José Ávila, e que só se dispunha a recomendar-me ao conde por Diogo.
            Após vinte minutos de viagem, a carruagem em que seguíamos parou numa ruazinha estreita, em frente a uma porta que tinha por cima um letreiro de madeira, pintado a preto, que anunciava: Pensão IlhaBela. Apeámo-nos, tirámos as nossas malas da carruagem, dividimos a despesa do transporte pelos três e depois de o homem ter partido, Rodrigo conduziu-nos para dentro da pensão.
            O prédio era antigo e, tanto por fora como por dentro, evidenciava uma série de reparações mal rematadas, ao mesmo tempo que exibia a necessidade de outras. Na recepção, sentada atrás de um velho balcão de madeira, a cerzir, estava uma mulher dos seus quarenta e muitos anos, forte, com o cabelo um pouco desgrenhado, mas de ar bonacheirão e simpático. Ainda assim, a sua figura impunha um certo respeito. Ao ouvir-nos entrar, levantou a cabeça do trabalho que estava a fazer e pareceu satisfeita ao ver Rodrigo.
 
– Olá, senhor Rodrigo! Então, já de volta? Fez boa viagem?
– Óptima, D. Rita, óptima. Trago-lhe dois novos hóspedes.
 
            D. Rita fez uma careta, mas não parecia verdadeiramente zangada.
 
– Ai, ai, senhor Rodrigo! Já não estou farta de lhe dizer que não tenho espaço? Onde é que quer que meta os rapazes? Não posso inventar mais quartos!
– Eu sei, mas para onde quer que eu os mande? Bem sabe que os fui buscar por ordem do conde. Além disso, ninguém ocupa o lugar do Edgar e do André desde que... desde que tombaram em combate. Vá lá, são bons rapazes, e úteis à causa. Com certeza que lhes arranja um cantinho.
– Hum... Bom, se o Bernardo e o Eduardo não se importarem de partilhar o quarto com novos companheiros, podem lá ficar. Todos os outros quartos já têm pelo menos cinco pessoas. Mas devo avisar que o quarto só tem duas camas. Posso arranjar-vos uns colchões e ficam a dormir no chão.
 
            A perspectiva não era muito agradável, mas tendo em conta que iríamos ficar instalados dentro de um autêntico ninho de liberais, não ousámos recusar.
 
– Escutem – disse-nos Rodrigo, antes de respondermos. – Se não quiserem ficar, não há problema. Há para aí muitas pensões cheias de vagas, mas não se esqueçam de que aqui estão muito mais próximos da causa.
– Nós ficamos – disse eu. – Queremos ser úteis.
– Então, digam lá os vossos nomes, para pôr aqui no registo – declarou D. Rita.
 
Senti-me de novo constrangido por causa do meu nome, pois não queria trair a minha origem, mas Rodrigo pareceu ter percebido e interveio:
 
– Não há problema, Pedro. A D. Rita é das poucas pessoas a quem se pode contar tudo. Ela não o vai julgar mal por o seu pai ser absolutista.
 
            Com efeito, embora parecesse ficar surpreendida, a dona da pensão não fez qualquer comentário desagradável acerca do assunto. Porém, logo de seguida, Rodrigo advertiu-me:
 
– No entanto, seja prudente. Há por aí alguns fanáticos que se soubessem quem você realmente é, depressa lhe trespassariam o pescoço com uma navalha. Esquecem-se que se não houvesse liberais também entre os nobres, Vila Flor não estaria do nosso lado.
 
            D. Rita assentou os nossos nomes e, entregando-nos uma chave, declarou:
 
– O quarto é o 203. Só tenho duas chaves e a outra está com o Sr. Bernardo ou o senhor Eduardo. O pagamento é feito até ao dia dez de cada mês, sem atrasos. Não há almoços servidos no quarto. Como podem calcular, estamos sobrelotados e é impossível servir almoços a horas decentes se andarmos de quarto em quarto. Podem almoçar cá em baixo ou ir a um restaurante, estamos entendidos?
– Pode ficar descansada – assegurei.
 
            Em seguida, Rodrigo conduziu-nos ao quarto. Ao passar pelo pequeno átrio, em direcção à escada que nos conduziria ao segundo andar, entrevimos, por uma pequena porta, a sala onde se serviam as refeições e onde os hóspedes se distraíam. Pelo ar abafado e barulhento, pudemos fazer uma ideia mais concreta de como a pensão estava sobrelotada.
            Os degraus rangiam sob os nossos pés, mas o ruído, longe de ser desagradável, parecia transmitir-me uma sensação algo familiar; talvez porque reconhecia o mesmo som das escadas do Roseiral.
            Rodrigo indicou-nos o quarto e bateu à porta.
 
– Bernardo, Eduardo, estão aí?
 
            Mas não houve resposta.
 
– Devem estar lá em baixo. Instalem-se enquanto eu os aviso de que têm novos companheiros de quarto.
 
            Rodrigo voltou a descer a escada. Com a chave que D. Rita nos tinha entregado, entrámos no 203. Não era propriamente espaçoso ou luxuoso, mas tinha um aspecto asseado. Além das duas camas, colocadas a poucos centímetros uma da outra para ganhar espaço, havia apenas uma mesa-de-cabeceira minúscula e uma cadeira. Em cima da mesa, papel e tinta de má qualidade. Do lado contrário à porta, encostado a uma janela, um guarda-fatos onde parecia impossível fazer caber a roupa de quatro pessoas. Uma camisa branca mal dobrada em cima da cadeira e um par de calças cinzentas por cima de uma das camas fizeram-nos perceber que os nossos companheiros de quarto não eram propriamente um exemplo de arrumação e organização. Percebi então como Cecília nos iria fazer falta. Os pensamentos de Diogo também pareciam ter-se voltado para a nossa velha habitação, pois sentou-se em cima de uma das camas e suspirou:
 
– Que estarão a fazer no Roseiral, a esta hora?
– Que estará Luz a fazer, queres tu dizer.
– Que disparate!
– Não, disparate é quereres negar a ti mesmo o que sentes pela minha irmã.
            Por momentos, ficámos em silêncio. A recordação do Roseiral e de Maria da Luz parecia ter criado um ambiente mágico. Por momentos, a pequenez e o ar impessoal que o quarto nos transmitia desapareceram. Mas a magia foi interrompida por duas pancadas vigorosas na porta.
 
– Entre, não está trancada.
 
            Rodrigo abriu a porta e por trás dele surgiram dois rapazes. Um loiro, o outro moreno; o primeiro não devia ter mais de dezasseis anos, o segundo cerca de trinta.
 
– Achei que devia apresentar-lhes os vossos companheiros de quarto. Este é o Bernardo e este é o Eduardo.
 
            E virando-se para os dois homens:
 
– O Pedro e o Diogo, de quem vos falei.
 
            Bernardo, o mais velho, mostrou-se simpático. Deu-nos as boas-vindas e parecia querer fazer-nos sentir à vontade. Quanto a Eduardo, embora fosse educado, parecia algo contrariado com a nossa presença, e depois de nos cumprimentar, pediu imediatamente licença para se retirar, alegando que tinha alguém à sua espera.
 
– Não liguem ao Eduardo – recomendou Bernardo, após ele ter saído. – A semana passada perdemos os nossos antigos companheiros de quarto em combate e ele ainda está bastante abalado.
– Suponho que esteja ressentido por achar que viemos para tomar o lugar deles... – declarou Diogo.
– Logo lhe passa. É bom rapaz, e tão valente, naquela idade...
 
            Bernardo interrompeu-se de repente e fitou-nos.
 
– Só agora reparei que não devem ser muito mais velhos do que ele. Já têm idade para se alistarem?
– Deixa lá os rapazes – interrompeu Rodrigo. – Bem sabes que não nos podemos preocupar com isso agora, e o conde também o sabe. Além disso, se Eduardo tem sido um bom soldado, porque é que eles não o seriam?
– Suponho que tenhas razão...
 
            O resto da manhã foi passado a conversar. Almoçámos os três juntos na pensão e, de tarde, Diogo e eu encarregámo-nos de desfazer as malas e de escrever a Luz, a Cecília e à tia Francisca. No dia seguinte era domingo, pelo que Diogo e eu nos levantámos bastante cedo, para ir à igreja, mas cedo descobrimos que tal hábito não era compartilhado pela grande maioria dos hóspedes da pensão. No entanto, encontrámos D. Rita, que pareceu satisfeita ao ver-nos.
 
– Ah, vejo que são bons cristãos – declarou, sentando-se perto de nós, antes de o padre começar. – Estou farta de dizer ao Sr. Rodrigo e a outros como ele que deviam levar a vida religiosa mais a sério. Afinal, quem vive constantemente a dois passos da morte, devia ter sempre a alma preparada.
– Não se aflija – recomendou Diogo. – Tenho a certeza de que Rodrigo também é bom cristão e que Deus lhe há-de perdoar as ausências na missa.
 
            Na manhã de segunda-feira, alistámo-nos. E nesse mesmo dia iniciámos o serviço militar. No entanto, continuámos a residir na pensão, pois como Rodrigo já nos explicara, a afluência era tanta que os quartéis não chegavam para alojar todos os jovens soldados.
            O serviço militar não era fácil. Requeria muita disciplina e determinação, mas o que mais nos exasperava era o facto de, ao fim de uma semana, ainda não termos sido chamados para combater. Porém, Rodrigo ria da nossa impaciência e recordava-nos que a guerra não seria ganha por soldados com uma semana de prática.
            A não ser pelo facto de nos sentirmos impacientes, a nossa vida na ilha não era, de maneira nenhuma, um exílio. É claro que as saudades da família se faziam sentir a todos, mas pouco a pouco, Diogo e eu fomo-nos tornando amigos dos hóspedes da pensão de D. Rita. Almoçávamos juntos e, por vezes, apanhávamos valentes bebedeiras; jogávamos às cartas; pregávamos partidas uns aos outros e massacrávamos o juízo de qualquer desgraçado que se lembrasse de nos confessar que tinha uma nova namorada. Mas quando alguns dos homens – uns já efectivos, outros pela primeira vez – recebiam a chamada para ir combater, fazia-se um silêncio de morte, pois nunca sabíamos quantos deles não voltariam. As amizades que ali se faziam eram, possivelmente, das mais fortes que já conheci, e embora convivêssemos lado a lado com a morte, quando alguns não regressavam, era como se fosse um pouco de nós que morria. E quase sentia estar a ser egoísta por lamentar a demora da minha oportunidade de combater.

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