terça-feira, 26 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo VIII (PROVISÓRIO)

Recordo-me perfeitamente da minha primeira experiência como um liberal. Tinha eu então dezassete anos e a notícia de que os homens do Belfast tinham sido recebidos no Porto como heróis provocara em mim – e também em Diogo, embora este se mantivesse mais reservado – um estado de euforia de que só as mentes sonhadoras da juventude são capazes. Por seu lado, o meu pai espumava de raiva, esbracejava e deitava às mãos à cabeça.
 
– Será que esses liberais nunca desistem? – dizia, com a sua voz que parecia fazer estremecer o sólido Roseiral.
 
            Apesar de viver constantemente isolado numa redoma invisível construída de ódio contra o resto do mundo, o meu pai era um homem que gostava de estar perto da acção. Por isso, sempre que a questão entre absolutistas e liberais sofria nova evolução, ele pegava numa carruagem, no cocheiro, e ia ao encontro dos acontecimentos. Geralmente, viajava só, mas dessa vez, resolveu levar a família consigo. No dia em que recebemos a notícia do que se estava a passar no Porto, o meu pai chamou-nos – a mim e a Luz – e anunciou:
 
– Preparem-se para viajar amanhã bem cedo. Vamos passar uns dias em casa da tia Francisca.
– Vamos para o Porto? – admirou-se Luz.
– Sim. Parece que os liberais andam outra vez a fazer das suas. Quero lá ir para ver de perto o que se passa. Quero que venham comigo, a tia Francisca já não os vê desde pequenos. E tu, Pedro, vais ter oportunidade de ver os teus idolozinhos serem esmagados, uma vez que os absolutistas já começaram a exercer represálias.
– Provavelmente, exercem-nas nas mulheres e nos filhos dos nossos homens! – ripostei, mais para o ofender do que por julgar que era verdade.
– “Nossos homens!” Vejam como ele fala! Não é meu filho, o homem que assim fala!
 
            Abri a boca para responder, mas senti a mão da minha irmã apertar-me o braço, como que suplicando que não desse continuidade àquela discussão. O meu pai também percebeu o gesto e optou por deixar as coisas por ali.
 
– Avisem Cecília e Diogo – disse, mudando o rumo da conversa. – Eles vêm connosco. Não sei quanto tempo lá vamos ficar e não quero roubar os criados da vossa tia aos respectivos deveres.
 
            Partir para o Porto, onde no momento estava a decorrer uma tentativa de instalar o poder liberal, era por si só aliciante, mas poder partilhar esse momento com Diogo tornava as coisas ainda mais atraentes, pelo que corri a dar-lhe a notícia.
 
– E D. José quer que eu vá? – estranhou ele. – Julguei que quisesse mantê-lo o mais possível afastado de qualquer liberal.
– Está convencido de que me pode dar uma lição. Vou provar-lhe que a minha dedicação ao ideal liberal não é um capricho de juventude!
 
            Na manhã seguinte, toda a família – e também Cecília e Diogo – se levantou cedo. Mas creio ter sido eu o primeiro a despertar, pois mal chegara a dormir. Apenas rebolara na cama, impaciente pela chegada da hora de partir. No entanto, quando depois de me vestir, espreitei pela janela, já Diogo colocava as nossas malas na carruagem.
            Deviam ser umas cinco e quarenta. O céu só agora começava a clarear e eram ainda visíveis algumas estrelas. No horizonte, o céu vestia-se de tons avermelhados e alaranjados.
            Como já estava pronto, saí ao encontro do meu amigo.
 
– Vamos ter calor para a viagem – comentei, enquanto o ajudava a pôr a última mala na carruagem.
– Sempre é melhor do que viajar por caminhos cheios de lama.
 
            Luz foi a próxima a juntar-se a nós. Trazia um vestido de um cor-de-rosa muito suave e umas luvas de renda branca. Notei que parecia triste e que me olhava de forma estranha.
 
– Não me olhes como se eu me fosse embora sozinho e para sempre – disse eu, meio a sério, meio a gracejar.
– Se soubesses como receio esta viagem...
– Mas do que tens tu receio?
 
            Maria da Luz ficou um momento em silêncio e depois exclamou:
 
– Pedro, promete-me que se houver lutas por lá, não tomas parte nelas!
– Não te posso prometer isso.
– Oh, Diogo, promete-me tu por ele! Jura que não o deixas envolver-se em rixas!
 
            Diogo ia responder, mas eu antecipei-me.
 
– O Diogo não te pode prometer por mim. Não tens o direito de lhe pedir isso. Ele é meu amigo, não é meu pai. Mesmo que quisesse, não poderia controlar as minhas decisões.
– Tens razão... Nem ao pai tu ouves...
 
            Perante o ar abatido da minha irmã, Diogo olhou-me com ar reprovador.
 
– Dê-me a sua mão, Luz. Eu ajudo-a a subir.
 
            Luz obedeceu e quando ela já se encontrava dentro da carruagem, Diogo aconselhou-me:
 
– Não deve ser tão ríspido com a sua irmã. Ela está preocupada e não deixa de ter razão.
 
            Abri a boca para responder, mas avistei Cecília, que se aproximava de nós, e achei que aquela não seria uma discussão oportuna para o momento, por isso, calei-me. Cecília chegou com um cesto em que trazia a merenda para a viagem, entrou, sentou-se ao lado da minha irmã e eu subi também. Quando o meu pai chegou, Diogo saltou para o lugar do cocheiro e deu início à nossa viagem. Como eu previra pelas tonalidades do céu, o dia esteve bastante quente e, por volta do meio-dia, o meu pai recomendou a Diogo que achasse uma sombra onde pudéssemos descansar, pois Luz, habituada à clausura do Roseiral, começara a sentir-se zonza com o calor e com os solavancos da carruagem.
            Assim que Diogo achou a desejada sombra, saímos, sentámo-nos em cima de um cobertor que Cecília trouxera para esse efeito e comemos parte das iguarias que ela tinha preparado. Descansámos ali quase uma hora, até Luz se sentir melhor, e pusemo-nos novamente a caminho.
            Eram dez e quarenta e cinco da noite quando chegámos a casa da tia Francisca, e como sabíamos que ela tinha por hábito não se recolher antes das onze e meia, não corríamos o risco de a acordar. Saímos todos da carruagem, bastante cansados e moídos. E enquanto Diogo ia tirando as nossas malas, o meu pai batia à porta. Ouviram-se passos que vinham em direcção à porta e a própria tia Francisca – pois os criados já estavam a dormir – veio atender. Soltou uma exclamação que era simultaneamente de espanto e de alegria:
 
– Valha-me Deus! Os meus queridos sobrinhos!
 
            A tia Francisca era a irmã mais velha da minha mãe e tinha mais quinze anos do que ela teria se fosse viva. Tinha-se casado muito jovem e enviuvara há oito anos, o que a envelhecera bastante. Apesar de ter apenas cinquenta e um anos, o seu rosto assemelhava-se ao de uma velhinha, mas tornava-se extremamente simpático devido ao olhar meigo e bondoso. Tratava o meu pai por irmão e talvez por nunca ter tido filhos, gostava de nós como se o fôssemos.
 
– Entrem, entrem! Já jantaram? Eu já comi, mas ainda se arranja alguma coisa.
– Obrigado, Francisca – respondeu o meu pai. – Já comemos na viagem. Não nos leve a mal aparecer assim, sem avisar...
– Que disparate!
 
            Enquanto Cecília e Diogo arrumavam a nossa bagagem nos aposentos indicados pela tia Francisca, nós éramos conduzidos por ela até à sala, onde nos sentámos.
 
– O que é que os traz por cá, afinal? – indagou.
 
            Mas logo em seguida o seu sorriso se desvaneceu, e antes que algum de nós tivesse tempo de responder, exclamou:
 
– Não me digam que é por causa dessa história do Belfast! Desde que o maldito do barco chegou que não oiço falar de outra coisa.
– É por isso mesmo, minha cara irmã.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela, olhando alternadamente para o meu pai e para mim. – Vocês ainda discutem por causa disso?
 
            Mas como que adivinhando que aquela pergunta poderia originar ali mesmo uma discussão, ela própria deu a resposta:
– Bom, não interessa! – E mudando de assunto: – Como vocês cresceram! Estás um homem, Pedro! E tu, minha filha, que parecida estás com a tua mãe, que Deus a tenha! É como se tivesse a Luisinha aqui outra vez...
 
            O meu pai viajava frequentemente para o Porto, pois era quase sempre lá que tinham lugar os acontecimentos relacionados com a guerra que estava para rebentar, mas eu e Luz já não víamos a tia Francisca há muito tempo. Na verdade, há demasiado tempo para nos podermos lembrar dela. E assim, redescobríamos com prazer a sua simpatia.
 
– Devem estar cansados da viagem – disse. – Vou ver se a Cecília já acabou de arrumar as vossas coisas nos quartos.
 
            A tia Francisca retirou-se e regressou dez minutos depois.
 
– Já está tudo em ordem. Peço que me desculpem, mas a casa não é tão grande como o Roseiral, por isso, vão ter fazer alguns sacrifícios. José, fica no quarto grande, como de costume. A Luz e a Cecília dormem no quartinho que era para ser do filho que Deus não nos quis dar. Isto, se não te importares que a Cecília durma no mesmo quarto que tu.
– Claro que não me importo, tia.
– Bem, o único quarto que resta é da dependência da criadagem. Pedro, incomoda-te ter de partilhar o quarto com Diogo?
– Não, tia. De maneira nenhuma.
 
            Assim que tive oportunidade, desejei boas noites à tia Francisca e ao resto da minha família e, alegando que estava morto de cansaço, retirei-me para o quarto que iria ocupar. Tal como o Roseiral, a casa tinha um pequeno anexo pegado à cozinha, onde ficavam os quartos dos criados. O quarto onde eu e Diogo iríamos ficar não era muito grande, mas tinha um aspecto acolhedor. As roupas das camas eram simples e alguns cobertores já por mais do que uma vez tinham sido remendados, mas por alguma razão que não sei explicar, não conseguia evitar pensar que deviam ser bastante mais aconchegantes do que os que havia nos quartos luxuosos mas frios do Roseiral.
            Quando entrei no quarto, já Diogo estava deitado, mas ainda acordado, e a vela da sua mesa-de-cabeceira estava acesa.
 
– Acho que a minha mãe deixou o seu pijama atrás do biombo – disse.
 
            Vesti-me, saltei para cima da cama que estava vaga e exclamei:
 
– Isto é magnífico! É tal e qual como quando éramos pequenos, lembras-te?
– Claro. Éramos como irmãos.
– Ainda somos, Diogo.
– Eu sei. Não quis dizer que...
– Eu sei o que quiseste dizer – interrompi. – Na altura, era-nos permitido ser como irmãos e agora, temos de agir como criado e patrão.
– A culpa não é sua.
– Se ao menos acedesses a tratar-me por tu...
            Diogo soltou uma gargalhada divertida.
 
– É mesmo como quando éramos pequenos! – exclamou. – Lembro-me de termos tido uma conversa igual a esta. Ainda se lembra do que eu lhe respondi?
– Qualquer coisa acerca de não desobedecer à tua mãe e ao meu pai... Também disseste que isso não tinha influência na nossa amizade.
– Então, não preciso de lhe dizer mais nada – respondeu.
 
            Diogo apagou a vela, desejou-me boa noite e virou-se para o outro lado, para dormir. Eu retribuí as boas noites, mas estava demasiado entusiasmado com a ideia de ver como estava a cidade depois da chegada dos liberais – e até de dar uma lição a algum absolutista que encontrasse pelo caminho – por isso, só consegui adormecer ao fim de umas duas horas.
O resultado foi estar cheio de sono na manhã seguinte, quando Cecília veio bater à porta, como fazia quando eu e Diogo dormíamos no mesmo quarto, no Roseiral.
 
– Vamos a acordar! – exclamou ela, do lado de fora. – Não se atrasem para o pequeno-almoço.
 
            Não resisti à tentação de me virar para o outro lado e ignorar a recomendação, mas acabei por despertar ao sentir um objecto leve aterrar em cima de mim. Fora Diogo que me atirara a sua almofada e ria do meu ar estremunhado.
 
– Apetecia-me ficar na cama até ao meio-dia! – resmunguei.
– Julguei que estava com pressa de ir dar uma volta pela cidade, ver os estragos...
 
            O argumento usado por Diogo fez-me esquecer o sono nesse mesmo instante. Pulei da cama, deitei a água que estava dentro de um jarro para uma bacia, lavei-me, dirigi-me para trás do biombo onde tinha deixado a roupa e vesti-me. Não valia a pena esperar por Diogo, pois de qualquer forma, não iríamos tomar o pequeno-almoço juntos, portanto, disse-lhe:
 
– Vou ter contigo à cozinha depois do pequeno-almoço.
 
            Quando entrei na sala, apressado e ainda a abotoar um punho da camisa, já a família se tinha reunido à mesa.
 
– Peço desculpa pelo atraso – disse, sentando-me. – Estava tão cansado que dormi como uma pedra.
– Não tem importância – retorquiu a minha tia. – Ainda bem que dormiste bem.
 
            O pequeno-almoço foi mais animado do que os que tomávamos no Roseiral. Perto da boa disposição da tia Francisca, não havia silêncio capaz de durar muito tempo. Porém, quando eu já julgava que, pela primeira vez desde há muitos meses, ia conseguir partilhar com o meu pai uma refeição sem conflitos, ele interpelou-me, e imediatamente, qualquer coisa na sua voz me fez estremecer.
 
– Pedro. – disse, enquanto barrava uma fatia de pão com compota de morango – Vou visitar um amigo, esta manhã. Gostava que viesses comigo.
 
            Por mais que o meu pai se esforçasse por fazer a sua voz sair natural, eu sabia que ele me queria levar a ver algum velho absolutista exercer o seu poder, a sua influência no meio político, de forma a contrariar a causa liberal, por isso, respondi:
 
– Agradeço o convite, mas já tinha planeado dar uma volta pela cidade.
 
            Luz olhou-me com tristeza e a tia Francisca pareceu ficar surpreendida com a minha atitude hostil.
 
– Desculpa meter-me onde não sou chamada, filho. – disse. – Mas tens muitos dias para ver a cidade. Porque não fazes hoje companhia a teu pai?
 
            Apeteceu-me gritar-lhe que sabia muito bem o que ele pretendia, mas não queria ser mal-educado na casa de uma pessoa que nos tinha recebido tão bem, por isso, respondi, sem gritar mas com firmeza:
 
– O pai não pode esperar que um rapaz da minha idade passe o dia fechado numa casa com o senhor e com os seus amigos. Além disso, já pedi a Diogo que me acompanhasse à cidade.
 
            Não fora sem malícia que eu trouxera o nome de Diogo para aquela conversa. Poderia perfeitamente ter omitido aquele facto, mas os conflitos com o meu pai haviam-se tornado quase um vício, e eu sabia que a minha amizade com Diogo, um criado, filho de um liberal, o exasperava. E sabia que dar-lhe a entender que trocava a sua companhia pela dele, em frente da minha irmã e da minha tia, o faria sentir-se humilhado, e que isso accionaria a mola, dando origem a uma nova discussão. Apesar disso, arrependi-me destas palavras no mesmo momento em que as pronunciei, pois sabia que sem querer, provocava o aumento do ódio de meu pai por Diogo.
            Irritado, o meu pai gritou:
 
– Diogo não sai desta casa! Não o trouxe para andar a passear. É um criado e a tua tia pode precisar dele!
 
            Foi a minha vez de me exaltar, e pondo-me de pé, respondi:
 
– Diogo é nosso criado, não da tia Francisca, e eu quero que ele me acompanhe! Tenho a certeza de que a tia não se põe.
 
            A minha tia interveio, tentando evitar que a discussão fosse mais longe.
 
– Pedro tem razão – disse. – Porque é que ele não há-de levar Diogo? Há-de precisar de alguém para conduzir os cavalos. Eu não vou precisar dele. Criados não faltam nesta casa.
 
            Vendo que o meu pai não a contradizia, aproveitei o momento para me retirar.
 
– Se me dão licença, – disse – Diogo está à minha espera.

Retirei-me da sala e dirigi-me à cozinha, onde se encontravam Diogo, Cecília e mais duas criadas da tia Francisca, que me fitaram espantadas, pois não estavam habituadas a que os hóspedes invadissem a sua cozinha.
 
– Bom dia – disse. E virando-me para o meu amigo: – Diogo, estás pronto?
– Sim, estou pronto, mas...
 
            Diogo parecia hesitar.
 
– Mas o quê?
– Não tive a intenção de ser indiscreto, mas não pude deixar de ouvir... O seu pai não gostou da ideia de eu o acompanhar. Talvez não devesse desobedecer-lhe.
– Não te preocupes. A tia Francisca acalmou-o. Ela é a dona da casa e dispensa-te de boa vontade.
 
            Apesar de tudo, Diogo e eu saímos pela porta da cozinha, não tanto por ser a que estava mais perto, mas para não termos de passar pelo meu pai. Decidimos não levar os cavalos, pois isso denunciaria a minha condição de nobre e eu desejava passar despercebido no meio do povo.
            As ruas estavam cheias de agitação. Em todo o lado se encontravam populares gritando palavras pouco lisonjeiras contra o regime absoluto de D. Miguel e louvando, simultaneamente, os liberais do Belfast. Para mim – e também para o meu amigo – era uma experiência completamente nova e excitante. Alguns dos homens que tinham chegado no barco passeavam por ali, saudando a população, e como todos os que ali se encontravam, também eu e Diogo olhávamos para eles como verdadeiros heróis, gigantes capazes de vencer tudo e todos. Os gritos, o entusiasmo daquela gente, tudo era contagiante, e eu sentia algo de estranho no peito. Era como que um aperto, mas um aperto que causava prazer, que me fazia sentir mais vivo, como se o coração estivesse a ponto de me saltar pela boca.
            Mas algo se passou que fez com que aqueles homens e mulheres – algumas com crianças de colo – começassem a correr e a gritar de tal maneira que ninguém percebia o que diziam. Embora, no início, eu não conseguisse perceber o que se passava, a explicação para a debandada não se fez esperar. De todos os lados surgiam grupos de soldados armados – uns a pé, outros a cavalo – que perseguiam os populares, disparando contra todos aqueles que ousavam criticar D. Miguel e a sua política.
            Perante o nosso assombro, tombaram corpos atingidos pelas balas dos soldados – corpos de homens do povo, de mulheres jovens – e em pouco tempo, nas ruas onde há minutos se ouviam os gritos e as vozes animadas da multidão, o silêncio apenas era quebrado pelo som dos cascos dos cavalos e das botas dos soldados. As ruas ficaram desertas. À excepção daqueles que tinham sido apanhados por uma bala antes de se conseguirem pôr a salvo, não se via ninguém.
            Diogo e eu tínhamo-nos abrigado numa velha casa em ruínas e o meu coração parou de bater quando um grupo daqueles assassinos ferozes passou por nós em passo de corrida.
 
– Pensei que íamos morrer!... – exclamei, depois de eles se afastarem.
– Também eu...
            As ruas estavam agora mergulhadas num silêncio total. A medo, Diogo e eu saímos do nosso esconderijo e olhámos em redor, para os corpos caídos na calçada. O espectáculo era deprimente e causava-me náuseas. Não havia nada a fazer e, no entanto, não conseguia forçar-me a abandonar aquele lugar. Diogo devia sentir o mesmo, pois também não se movia. Mas algo veio obrigar-nos a regressar à realidade. Um som – um gemido – fez-nos olhar na direcção de um dos corpos tombados na rua. Ainda tinha vida. Corri imediatamente para junto do moribundo, seguido por Diogo. Era um rapaz dos seus dezassete, dezoito anos, que havia sido atingido no ventre. Pela expressão do seu rosto e pelos seus gemidos abafados, percebia-se que padecia de fortes dores. Não podíamos fazer nada por ele. Não fazíamos a menor ideia de onde poderíamos encontrar um médico, e mesmo que o encontrássemos, não era provável que pudesse fazer alguma coisa por ele. Só nos restava ajudá-lo a suportar aqueles momentos de dor que o separavam ainda da morte.
 
– Não quero morrer... – gemeu ele.
 
            Eu estava demasiado emocionado para conseguir falar e Diogo era demasiado sincero para lhe dizer que não ia morrer, ainda que fosse para o consolar.
 
– A minha mãe... A minha mãe está à minha espera... Não posso morrer...
 
            Era inútil, mas o instinto levou-me a tentar parar a hemorragia com o meu lenço.
 
– Digam-lhe que eu morri por causa justa... por favor.
 
            Vi Diogo abrir a boca para falar, mas já não teve tempo. O rapaz acabava de exalar o seu último suspiro.
 
– Tenho pena de não ter conseguido perguntar-lhe quem era a sua mãe. Gostaria de poder satisfazer-lhe o último pedido.
 
            Até àquele momento, sentira essencialmente pavor, confusão de espírito e dó daqueles que tinham perdido a vida naquela vingança dos miguelistas, mas nesse momento, senti um ódio tão forte que me fazia estremecer todo o corpo.
 
– Malditos absolutistas! – gritei.
 
            Mas logo me arrependi, ao sentir uma mão pesada sobre o meu ombro. Virei-me bruscamente e dei de caras com quatro soldados. Provavelmente, vinham confirmar que a rusga tinha sido bem sucedida. No início, espantei-me por não terem, simplesmente, dado um tiro a cada um de nós. Mas calculei que, talvez pelo meu vestuário, tivessem percebido que eu era de famílias nobres e que poderiam meter-se em sarilhos ao matarem-me, ou a um criado meu.
 
– Estão os dois presos – declarou o que me tocara.
– Posso perguntar porquê? – perguntei, em tom severo.
– São simpatizantes dos liberais. Vimo-los a observar esses arruaceiros e agora, estavam a ajudar um deles.
            A minha vontade era mandá-lo para o Inferno, gritar-lhe que tinha todo o direito de ser liberal e que essa era a única causa justa que se poderia abraçar, mas Diogo, que conseguia manter o sangue-frio por mais tempo do que eu, respondeu, educadamente, mas com firmeza:
 
– Estávamos a ajudar um rapaz moribundo. Chegámos ontem à cidade e não sabíamos a que se devia toda esta agitação. Ficámos a observar por curiosidade. Ajudámos este rapaz porque achamos que ninguém deve morrer só. Não é nenhum crime.
 
            O soldado parecia hesitar.
 
– Nesse caso, podem dizer-me que não são agitadores liberais?
– Não somos agitadores. Se somos ou não liberais, não é da sua conta.
– Seja como for, terão de me acompanhar.
 
            Não sabia muito bem o que seria mais prudente: fugir e arriscar-me a apanhar uma bala ou segui-los, mas como não nos poderiam manter presos por muito tempo com base naquelas acusações, disse para Diogo:
 
– Talvez seja melhor obedecer.
 
            Diogo concordou e ambos seguimos os guardas pacificamente. Fomos levados para a esquadra e colocados na mesma cela, que já albergava uns seis ou sete homens, acusados de infracções semelhantes à nossa. Todos eles eram homens simples e olhavam com alguma desconfiança para a minha indumentária de nobre. Ignorávamos quanto tempo nos iriam manter ali, e Diogo, chamando-me a um canto da cela, disse-me:
 
– Talvez seja melhor mandar chamar o seu pai. Só Deus sabe o que nos irão fazer e não vale a pena arriscar a cabeça por uma coisa que não fez.
 
            Sabia que Diogo não era cobarde e que não tinha medo de enfrentar a morte em nome de um ideal. Era por mim que ele assim falava.
 
– Acusam-nos de sermos simpatizantes dos liberais – respondi – e é o que somos. Não vou esconder-me debaixo da asa de D. José.
– Fala assim por orgulho. E esse orgulho é descabido. Pode custar-lhe a vida.
– Escuta, se estivesses no meu lugar, não agirias da mesma forma?
 
            Diogo não respondeu, mas bateu-me amigavelmente no ombro. Ficou assim decidido que eu não mandaria chamar o meu pai e que aguardaríamos juntos o nosso destino, para ver o que este nos reservava. Contudo, poucos minutos depois de nos terem enfiado na cela, um dos guardas aproximou-se e, dirigindo-se a mim, declarou.
 
– Preciso dos vossos nomes.
 
            Sabia que dizer-lhe o meu apelido seria como um passaporte dali para fora, pois há muitos séculos que a minha família era conhecida como detentora de grandes títulos nobiliárquicos, mas sonegá-lo poderia ser interpretado pelo guarda como desrespeito e até mesmo como mais um crime, por isso, declarei:
 
– Pedro José Castanheira Ávila.
 
            Pude perceber que o homem tentava ver através dos meus olhos. Reconhecera um nome nobre e não sabia muito bem o que fazer.
 
– É parente de D. José Ávila?
 
            Foi a minha vez de ficar admirado.
 
– Conhece-o?
– Se não se importa, quem faz perguntas sou eu.
– É meu pai.
– D. José é um bom amigo.
 
            E virando-se para Diogo:
 
– E o senhor é?...
– Diogo é criado em nossa casa. E um amigo – respondi. E adivinhando o que o guarda iria dizer a seguir, declarei: – Se tenciona libertar-me por consideração a meu pai, devo avisá-lo de que não saio daqui sem Diogo.
– É pena que seja tão obstinado. Se aceitasse sair daqui sem o seu criado...
– Amigo – corrigi.
– Seja, sem o seu amigo, podia evitar chatices com o seu pai. Poderia dizer-lhe que tinha apanhado Diogo sozinho, mas para soltar os dois, terei de mandar chamar D. José.
– Em primeiro lugar, – retorqui – o senhor não é um verdadeiro amigo do meu pai, pois prontificava-se para lhe mentir em troca de mais um prisioneiro. Em segundo, se pensa que me assusta com as suas ameaças, está enganado. Sei muito bem aquilo que eu e Diogo fizemos e não foi nada por que nos possam condenar. E acima de tudo, eu jamais trairia um amigo, especialmente Diogo. Por isso, se quer chamar o meu pai, chame. Mas se se atrever a dizer-lhe que encontrou Diogo sozinho naquela rua, eu encarregar-me-ei de o fazer ver que espécie de amigo o senhor é.
 
            As minhas palavras deixaram o guarda sem argumentos. Tinha conseguido transformar o seu ponto forte – a sua amizade com o meu pai – num ponto fraco. Tanto ele como eu sabíamos que era eu quem tinha na mão o trunfo mais forte, por isso, ele optou por se retirar sem dizer mais uma palavra.
            Diogo veio ter comigo.
 
– Agradeço-lhe o que fez.
– Não devias agradecer. Não devias esperar que eu agisse de outra forma.
– E não esperava. Mas seja como for, foi um acto de coragem.
 
            Os outros prisioneiros – uns jovens, como nós; outros, de idade mais avançada – que de início nos tinham olhado com desconfiança, pareciam ter ganho um novo respeito por nós após a discussão com o guarda.
 
– Foram presos por serem liberais? – perguntou um homem de cinquenta e poucos anos, procurando estabelecer a comunicação.
 
            Diogo e eu entreolhámo-nos, sem saber muito bem até que ponto seria prudente dizer a verdade, mas o homem, percebendo o nosso receio, declarou:
 
– Não tenham medo. Isto é tudo boa gente. Gente de D. Pedro, não de D. Miguel. Suponho que estejamos aqui pelos mesmos motivos.
– Para ser sincero, limitámo-nos a observar o que se passava. Fomos presos por ajudar um ferido.
– Logo vi! – exclamou um rapaz ainda mais novo do que eu ou Diogo, com um olhar cheio de vivacidade. – Filhos de nobres! Porque diabo se metem na nossa luta? Para se sentirem grandes heróis? Vocês nunca poderão ser verdadeiros liberais.
 
            Era a primeira vez que alguém me acusava de não ser um verdadeiro liberal e senti-me tão magoado quanto furioso por alguém pôr em dúvida aquilo que eu sentia e aquilo que eu seria capaz de dar pela causa. Por pouco, não esqueci que se tratava de alguém mais novo do que eu e lhe dei um murro, mas Diogo tentou convencê-lo da verdade das nossas convicções através das palavras.
 
– Eu sou tão humilde como tu, mas Pedro é o meu melhor amigo. Compreendo o que sentes, mas ele não é um nobre hipócrita a querer exibir valentia. Se assim fosse, deixaria que o pai pensasse que eu fora o único culpado de estarmos presos, em troca da sua liberdade.
– Ora, só não o fez por pura vaidade!
– Está calado, João Carlos! – ordenou o homem que primeiro nos dirigira a palavra. – Parece-me que quem se está a envaidecer és tu. A nossa causa precisa de gente, venha ela de onde vier. Não liguem ao meu neto. Ainda está um pouco verde, acha que pode vencer o mundo sozinho, mas é um bom aliado da causa.
 
            O rapaz encolheu os ombros com ar amuado, mas não respondeu.
            Enquanto esperávamos que nos dissessem qual seria afinal o nosso destino, aproveitámos o tempo para travar conhecimento com todas aquelas pessoas que ali tinham vindo parar, tal como nós, como vítimas da injustiça do Governo de D. Miguel, e acabámos mesmo por conquistar a simpatia do jovem João Carlos.
            O guarda veio interromper a nossa conversa; desta vez, seguido por meu pai. Este, mantendo-se de pé, atrás do guarda, assumira uma expressão severa, e o seu semblante, ainda mais carregado do que era habitual, fazia-o parecer mais velho. Pela primeira vez, tomei consciência de como aquela barba cerrada me arrepiava.
            O guarda abriu a cela, fez sinal para que eu e Diogo saíssemos, e seguimos todos para uma minúscula saleta, onde o guarda passou a explicar:
 
– Os meus homens prenderam-nos porque estavam a ajudar um agitador liberal.
– Estávamos a ajudar um homem ferido – corrigi.
 
            O guarda prosseguiu.
 
– Nos tempos que correm, não podemos correr riscos. É natural que os meus homens os tivessem julgado simpatizantes da causa liberal. De qualquer forma, é claro que a sua família está sempre acima de suspeitas. Por isso o mandámos chamar imediatamente.
 
            O meu pai não se mostrava satisfeito.
 
– Se tivesse realmente consideração pela minha família, – ripostou, em tom amargo – não teria precisado de me mandar chamar. Poderia simplesmente ter soltado os rapazes, não era preciso eu vir buscá-los. Mandou-me chamar porque não acredita verdadeiramente na inocência deles.
– O senhor compreende... Pedro está acima de quaisquer suspeitas, mas Diogo... Diogo é um criado e o seu filho... O seu filho é jovem, seria natural que tivesse uma visão distorcida do que é a lealdade e que tivesse mentido para proteger um amigo... Espero que não fique zangado comigo.
– Zangado? Não... Fico ressentido. Espero que isto não volte a acontecer.
 
            E sem apertar a mão do guarda, o meu pai virou costas, seguido por nós. Tinha trazido a carruagem e, talvez para evitar ter de fazer a viagem sozinho comigo, ordenou a Diogo que entrasse e ocupou ele mesmo o lugar do cocheiro.
            Quando chegámos, a minha tia e Maria da Luz fitaram-nos com ar apreensivo. O meu pai mandou Diogo para junto dos outros criados e pediu a Luz e à tia Francisca que o deixassem falar a sós comigo. A minha irmã, no entanto, tomou-me o braço e indagou:
 
– Pedro, estás bem? Não te fizeram mal?
– O teu irmão está bem. Agora, deixa-nos a sós.
– Estou bem – disse eu, para a tranquilizar. – Faz o que o pai diz.
 
            Embora relutante, Luz deixou-se conduzir pela tia Francisca para outra divisão da casa. Quando ficámos sós, o meu pai fitou-me e havia ódio no seu olhar. Sabia que ele pretendia castigar-me e, tomado mais de curiosidade do que de medo, pus-me a imaginar que castigo poderia aplicar-me. Perguntei a mim mesmo se teria a coragem de me dar uma sova, apesar de eu ter já dezassete anos, e pensei em como iria eu reagir se isso acontecesse. Suportaria o castigo em silêncio, embora convicto de que a razão estava do meu lado, ou reagiria usando a força, ainda que para isso tivesse de esquecer o respeito que impede um filho de bater no pai, ainda que este seja injusto? Talvez ele me mandasse de volta para o Roseiral, para evitar mais contactos com os liberais... Pensei que talvez despedisse Diogo, pois seria a forma de nos castigar a ambos de forma igualmente dolorosa. Esta última ideia assustou-me e com toda aquela tensão, a minha testa começou a ficar coberta de gotículas de suor. O meu pai, no entanto, não parecia notar todas as divagações que percorriam o meu espírito. Sentou-se e fez-me sinal para que fizesse o mesmo. Obedeci, sem dizer uma palavra.
 
– Não quero que voltes ao Roseiral – disse, abruptamente.
            Foi como se me tivessem puxado um tapete de debaixo dos pés, ou como se me tivessem dado um murro violento e eu tivesse ficado completamente tonto. Foi, afinal, como se me tivessem levado o mundo.
 
– Como? – indaguei, não certo do que tinha acabado de ouvir.
– É isso mesmo. Estou a expulsar-te de casa. Não és mais meu filho.
 
            Sentia o coração a bater descompassadamente e ao ver a calma, o desassombro com que o meu pai proferia aquelas palavras tão duras, sentia-me ainda mais desconcertado. Geralmente, quando discutíamos, era ele quem acabava por perder a calma e passar da razão à cólera. E eu costumava ter uma sensação de triunfo ao vê-lo ficar sem argumentos. Agora, era a minha vez de sentir que tudo o que dissesse, seria inútil. Vi, em poucos segundos, tudo o que seria obrigado a deixar para trás: o solar, que sempre fora o meu lar e onde, apesar de tudo, eu sempre tivera uma família. Não voltaria a ver Maria da Luz tão cedo. Vi cenas da nossa vida de crianças. Ia deixar para trás toda uma vida. Deixaria Cecília, que sempre me estimara tanto quanto ao próprio filho. Não tornaria a olhar para o grande retrato da minha mãe, que se encontrava num dos salões do solar. E, mal-grado meu, sabia que ia sentir a falta do meu pai. Odiava-o por aquilo que representava e defendia, mas não podia impedir-me de o amar. Compreendia agora que todas as vezes que lhe atirara à cara que não me importaria de viver longe dele, mentira sem o saber. Por instantes, fui capaz de engolir o meu orgulho e dizer:
 
– Não pode fazer isso...
 
            O ódio dos seus olhos desapareceu. Agora, só havia dor. E vi que era sincero ao dizer:
 
– Desculpa, Pedro. Não te quero mal. Mas se te perdoasse hoje, nunca me perdoaria a mim mesmo. É preferível que te vás.
– Não estava a pedir perdão. Não creio que tenha feito algum mal. Apenas lhe pedia para me aceitar como sou. Obviamente, foi um erro.
 
            A aspereza das minhas palavras trouxe o ódio de volta.
 
– Despede-te da tua irmã. Tinha planeado ficar mais tempo, mas amanhã mesmo voltamos para Coimbra. Já falei com a tua tia. Ela diz que podes ficar aqui até arranjares um sítio para ficar. A propósito, também já avisei Cecília de que tinha de despedir Diogo. A tua tia Francisca, que é demasiado generosa para o seu próprio bem, diz que ele pode ficar ao seu serviço até encontrar lugar noutra casa. A partir de amanhã, não quer que nos procures mais. Nem a mim, nem a Maria da Luz.
 
            Mil pensamentos atravessavam o meu espírito enquanto o meu pai falava. Começara por me sentir assustado e também um pouco magoado, mas agora, só sentia raiva, pois não lhe reconhecia o direito de me privar do contacto com a minha própria irmã.
 
– Não pode fazer isso! Não tem o direito de impor a sua vontade à Luz e nem a mim!
– Se a tua irmã me desobedecer, terá sempre lugar nesta casa.
            Não soube o que responder e o meu pai aproveitou para se retirar. No momento em que fiquei sozinho naquela sala, senti-me terrivelmente desamparado, desesperadamente só, e tive a sensação que, durante os próximos tempos, iria ser esse o aspecto da minha vida. O meu primeiro impulso foi de ir ter com Maria da Luz e dizer-lhe que abandonasse aquele velho prepotente, mas cedo percebi como isso seria tolo e egoísta. Não sabia como iria ser a minha vida dali para a frente. Não podia ficar eternamente em casa da tia Francisca e não podia pedir a Luz que abandonasse o conforto e a segurança do Roseiral por uma vida que eu não estava certo de lhe poder oferecer.
            Optei por seguir o conselho do meu pai. Calculei que Luz estivesse no quarto, por isso, dirigi-me para lá e bati à porta. Luz abriu imediatamente e, pela sua expressão preocupada, concluí que deveria ter permanecido ali, atrás da porta, esperando ansiosamente para saber qual o teor da nossa conversa.
 
– Posso entrar? – perguntei.
 
            Luz fez-se mais pálida, talvez por pensar que se eu preferia falar com ela a sós no quarto, em vez de irmos para sala, era porque o caso era grave. Sentei-me na borda da cama e, com um gesto, disse-lhe que fizesse o mesmo.
 
– O que se passa? – perguntou. – Pareces abatido e os sermões do pai não te costumam deixar assim...
– O pai decidiu voltar amanhã para Coimbra – respondi, sem coragem para lhe dizer tudo de uma vez.
– É só isso? Bem, para te dizer a verdade, fico aliviada. Aqui, estou sempre aflita. Contigo e com o pai.
– Eu não vou convosco, Luz.
– Não vais? Decidiste ficar mais uns tempos? Talvez seja boa ideia. Tu e o pai precisam de passar uns dias afastados. Tenho a certeza de que a tia Francisca não se vai importar. Eu ficava a fazer-te companhia, mas tu tens Diogo, que com certeza também fica, e eu não posso deixar o pai sozinho.
 
            Luz falara tão depressa e eu sentia-me tão sem coragem que não tinha conseguido interrompê-la. No entanto, quando ela acabou, pude dizer:
 
– Não, Luz. Eu nunca mais vou voltar ao Roseiral.
 
            Luz fitou-me com olhar aflito e, gaguejando, disse:
 
– Que estás tu a dizer? Não voltar... Compreendo que estejas zangado com o pai, mas... Escuta, eu não sei o que ele te disse, talvez te tenha ofendido, mas sair de casa... Não podes perdoar-lhe? Por mim?
 
            Sempre amara a minha irmã, mas nunca, até àquele momento, sentira por ela uma tão grande ternura. Aquela figura que ali estava na minha frente, a sofrer por minha causa, a segurar as minhas mãos, trazia-me à memória o retrato da minha mãe. Não pude deixar de pensar que se estivesse nas minhas mãos, por ela, eu ficaria.
 
– Oh, Luz... Acredita que a última coisa que eu queria era deixar-te nas mãos daquele velho amargo. Mas não posso fazer nada. Não me vou embora para desafiar o pai. Vou porque ele me pediu.
– O pai... expulsou-te de casa? Mas é uma loucura! Ele não sabia o que dizia... Estava exaltado... Eu falo com ele. Tenho a certeza de que...
 
            Após várias tentativas frustradas para interromper aquela torrente de palavras, consegui finalmente que ela se calasse, poisando-lhe um dedo sobre os lábios.
 
– Não quero que faças nada. Talvez tenha sido melhor assim. Foi bom ter acontecido agora. Teria acontecido mais cedo ou mais tarde e assim, evitamos dizer um ao outro coisas que talvez nunca pudéssemos perdoar.
– Mas virás visitar-nos, não é verdade? Voltarei a ver-te...
– Por favor, Luz, sê forte, para não me obrigares a mentir-te. Não sei quando nos veremos de novo. O pai não quer que eu te contacte.
– O quê?! Mas ele não tem esse direito! Se ele pensa que pode proibir-me de ver o meu próprio irmão...
– Por favor, Luz, não o desafies. Não o desafies por minha causa. Um dia, quando já estiveres casada, hei-de te visitar na tua casa e ele não poderá dizer nada. Mas agora, eu próprio não sei o que vou fazer da minha vida. Não sei até quando ficarei aqui e para onde irei depois. Não quero que fiques sem lar por minha causa. Promete que não lhe vais dizer nada. Promete, por favor.
– Mas...
– Promete.
 
            Um pouco contrariada, Luz acabou por dizer:
 
– Prometo.
 
            Depois de ter falado com Luz, achei que devia ir ter com Diogo, pois afinal, também ele iria sofrer as consequências daquela breve aventura. Encontrei-o na cozinha, a ter com Cecília uma conserva semelhante à que eu tivera com Luz.
 
– Peço desculpa por interromper – disse. – Vim em má altura. Eu depois volto para falar contigo, Diogo.
 
            Mas Cecília não me deixou sair e abraçou-se a mim, a chorar.
 
– Oh, menino Pedro! Que vai ser de mim sem vós os dois? Porque foram irritar assim D. José?
– Então, então, Cecília. Não a quero ver assim. O meu pai pode proibir-me de contactar com o Roseiral, mas não a pode impedir de se escrever com o seu próprio filho e eu mandarei notícias nas cartas dele. Eu sei que não é o mesmo que estarmos juntos, mas quem sabe, um dia...
 
Diogo interrompeu-me e disse a Cecília:
 
– Mãe, já lhe expliquei que a escolha não é nossa e que tanto eu como o Pedro gostamos muito de si. Oiça, eu e o Pedro temos de falar sobre o que está a acontecer. Prometa-me que não vai ficar a chorar.
– Vão lá, filhos. Não se preocupem comigo, que eu fico bem.
– Tem a certeza? – indaguei.
 
            Como resposta, Cecília tentou forçar-se a sorrir, e eu e Diogo fomos falar para o quarto. Estávamos os dois assustados, mas ao mesmo tempo entusiasmados com aquilo que iria ser a nossa vida dali em diante. Com um frémito de excitação a percorrer-nos o corpo e procurando nos olhos um do outro a pontinha de receio que nós próprios sentíamos, traçámos inúmeros planos, projectos a longo prazo. Queríamos fazer qualquer coisa de útil, lutar pelo nosso ideal, mudar o país, mudar o mundo. Mas não conseguíamos chegar a uma decisão, por isso, achámos melhor esperar que as nossas famílias partissem e aproveitar para estar com elas durante o resto daquele dia. O meu pai deve ter percebido essa necessidade que nós sentíamos de passar aquele dia juntos, pois pediu à minha tia que lhe mandasse servir as refeições no quarto. Eu estava revoltado contra o meu pai, contra a sua intolerância e prepotência, mas soube apreciar esse gesto e retribuí-o, despedindo-me de Luz e Cecília nessa noite, para que ele não tivesse de me ver de manhã. Contudo, fiquei a vê-los partir da janela do meu quarto, com a cortina semicerrada.

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