sexta-feira, 22 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo VII (PROVISÓRIO)

Maria da Luz nunca chegou a confessar diante de mim ou de Diogo que também tinha vontade de fazer reviver os velhos tempos, mas raparei que se esforçava por tratar Diogo com menos frieza, embora mantendo a distância conveniente para não desafiar D. José. Por volta das oito horas da manhã, se não estávamos já todos a pé, Cecília vinha bater na porta dos quartos dos mais preguiçosos, exclamando:
Desde os tempos mais remotos da minha existência que me recordo de um ritual que tinha lugar todos os domingos. 
 
– Então, então, toca a levantar! Olhem que chegam atrasados à missa!
            Para mim, a missa dos domingos – embora nos meus tempos de criança me parecesse uma coisa terrivelmente aborrecida e só lá fosse porque Cecília nunca me deixava escapar - cedo deixou de ser um sacrifício. Não só porque sentia, de facto, conforto nas palavras inflamadas e sinceras do padre Ricardo, mas porque era talvez a única ocasião em que eu, Diogo e Luz podíamos estar juntos sem que o olhar severo de D. José Ávila pudesse vir ensombrar a nossa amizade. Não por respeito à casa de Deus, mas simplesmente porque desde a morte da minha mãe que ele se mantinha de relações cortadas com Deus, e embora continuasse suficientemente católico para conseguir manter uma relação amigável com o padre Ricardo, apenas se abalava até à igreja em dias de festividades religiosas e pouco mais. Assim, Diogo conduzia-nos – a mim, a Luz e a Cecília – até à igreja, para assistirmos à missa do padre Ricardo, que apesar de ter tido já vários anos para se acostumar à ideia de que o meu pai era um fraco católico, todos os domingos sofria nova desilusão ao ver-nos chegar sem ele.
            Além de dia de missa, o domingo era também dia de feira. Os vendedores montavam as suas bancas no largo e esperavam que, ao sair da igreja, as criadas de casas de família e as donas de casa mais humildes ali se dirigissem para adquirir os produtos necessários para os seus lares.
            Cecília era uma dessas mulheres. Logo após a missa, Diogo conduzia a caleche até ao largo da feira, para que a sua mãe pudesse fazer as compras para o Roseiral. Uma vez lá chegados, dávamos uma moeda a um garoto para que ficasse a tomar conta da caleche e, enquanto Cecília procurava os alimentos que estavam em falta no Roseiral, Diogo, Luz e eu passeávamos pela feira, rindo e conversando alegremente e, durante cerca de meia hora, éramos outra vez três crianças sem identidade, como Luz dissera, sem códigos sociais a separar-nos.
            Mas era só nesses momentos que Luz conseguia libertar-se e ser ela própria. Assim que regressávamos ao Roseiral, ao alcance do olhar sombrio de D. José Ávila, Diogo voltava a ser para ela o criado fiel que ela respeitava mas a quem não podia ter verdadeiro afecto.
            Nos dois anos que se seguiram à morte de D. João VI, D Pedro – contrariamente ao que muita gente pensava que iria acontecer – não abandonou o seu país, e embora de longe, não deixou de tomar as medidas necessárias para evitar que o irmão chegasse e impusesse o seu regime absoluto. Contudo, Portugal estava longe de ter alcançado uma paz sólida e estável. As medidas reservadas de D. Pedro, que incluíam novamente D. Miguel no quadro político da nação, mas de forma reduzida e controlada, não agradava a nenhum dos partidos.
            No Roseiral, as discussões acendiam-se. Eu já não procurava falar do Liberalismo apenas fora do alcance da vista e dos ouvidos do meu pai. Amava demasiado a causa para a esconder, para sussurrar o seu nome pelos cantos em vez de o gritar com orgulho, para não a usar como bandeira de tudo aquilo em que eu acreditava.
            À hora do jantar, um de nós puxava invariavelmente o assunto e acabávamos sempre a discutir e a lançar um ao outro ofensas pouco graciosas entre dois seres humanos, principalmente, tratando-se de pai e filho. Por vezes, Luz conseguia travar-nos antes de nos tornarmos agressivos, mas geralmente, as nossas discussões evoluíam até se transformarem em verdadeiras batalhas verbais, nas quais cada um queria ser aquele que usava a espada com a lâmina mais fina e afiada para ferir o outro. Nessas alturas, já nenhum de nós os três acabava de jantar e durante a noite, eu ouvia Luz soluçar de mansinho no quarto ao lado e arrependia-me de me ter exaltado, o que não impedia que o mesmo voltasse a acontecer no dia seguinte.

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