quinta-feira, 21 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo VI (PROVISÓRIO)

Até certo ponto, Maria da Luz tinha razão. Não se podia, simplesmente, fazer reviver uma amizade que durante tanto tempo estivera esquecida, e a minha relação com Diogo não voltou de imediato ao que era. Tanto eu como ele tínhamos mudado, como acontece com todas as crianças ao crescerem. Era preciso conhecermo-nos de novo e respeitar os nossos novos seres. Mas uma pessoa nunca muda completamente, a essência é sempre a mesma e, felizmente, tendo como base a nossa amizade de crianças, pudemos construir uma nova amizade, mais sólida e mais madura, que nos viria a acompanhar o resto das nossas vidas. Mas se Diogo e eu encontrámos algumas dificuldades, para Luz foi ainda mais difícil restabelecer os antigos elos que nos uniam uns aos outros. Durante semanas, a minha irmã não tocou no assunto. Parecia ter preferido ignorar tudo o que eu e Diogo disséramos. Só uma coisa me fazia acreditar que ela não esquecera completamente as nossas palavras. Luz era uma rapariga recatada, mas não excessivamente tímida. Geralmente, encontrava-se na sala a tocar piano ou a bordar, ou apenas a fazer companhia a meu pai, e desde o dia em que tivéramos aquela discussão, Maria da Luz fazia os possíveis para me evitar e também para evitar Diogo. A minha impressão era de que ela se sentia envergonhada pelas coisas que dissera a Diogo e não queria, por isso, encará-lo.



– Talvez me tenha enganado a respeito de Luz – confiei ao meu amigo. – Talvez ela não seja tão mesquinha como o meu pai.
– Eu bem lhe disse que podíamos confiar nos sentimentos da sua irmã.
– Parece que conheces melhor a minha família do que eu...


Diogo ia responder, mas calou-se ao avistar o padre Ricardo, que se aproximava a passo de corrida, o que lhe conferia um ar um pouco cómico.



– Bom dia, padre – cumprimentei eu, pedindo-lhe em seguida a bênção.
– Olá, meus filhos – respondeu ele, com as feições extremamente pálidas. – Deus vos abençoe. Preciso de falar com D. José.


Diogo e eu entreolhámo-nos, tentando adivinhar o que teria deixado o bom do padre tão aflito.



– O que foi que aconteceu, padre? – indagou Diogo. – Porque vem tão esbaforido? Quer que peça à minha mãe que lhe traga um copo de água?
– Não, não, filho, obrigado. Preciso de falar imediatamente com D. José. Onde está ele?
– Creio que está no quarto. Quer que vá chamá-lo?
– Sim, Diogo, quero que o chames. E tu, Pedro, vai chamar a tua irmã, pois o que tenho para vos dizer também vos deve interessar.


Intrigados, Diogo e eu encolhemos os ombros. Restava-nos obedecer e esperar e foi isso que fizemos. Quando cheguei à sala com Maria da Luz, já lá estavam o padre Ricardo e o meu pai. Diogo já se havia retirado.

– Bom, padre Ricardo – disse D. José Ávila, com a sua voz grave e pausada. – Já aqui estão Pedro e Maria da Luz. Que notícia tão terrível é essa que tem para nos dar?
– É terrível, D. José, é terrível! O país... O país está de luto!
– O país, de luto? Porquê?
– O nosso rei... D. João VI faleceu.


Senti como que uma espécie de pancada no peito. A estupefacção era geral. O padre Ricardo, apesar da gravidade da notícia e da solenidade que esta exigia, mal conseguia disfarçar que se sentia intimamente inchado pelo impacto que causara. Mas o meu pai deixou-se cair no cadeirão e indagou:


– Quando? Como?
– Há duas semanas. Nem sempre as notícias viajam depressa.


Suponho que o meu pai tenha feito o pobre do padre contar a morte do monarca com todos os pormenores de que fosse conhecedor, mas as minhas preocupações voltavam-se já para o futuro. D. Pedro fora já proclamado Imperador do Brasil, não me parecia que pudéssemos contar com a sua presença no trono e se o povo aceitasse que D. Miguel regressasse do exílio para reinar, este faria tudo para esmagar os liberais. Não, D. Pedro não nos podia abandonar agora. D. Pedro tinha de regressar! D. João VI não fora capaz de introduzir uma política condutora no país, tentara conciliar as partes, mas isso não resultara. D. Pedro e D. Miguel eram ambos diferentes do pai. Tanto um como o outro haviam herdado a força de D. Carlota Joaquina e seriam eles que, para um lado ou para o outro, decidiriam como a nação iria agora ser conduzida.

Sem prestar já atenção a nada do que se dizia na sala, saí a correr, sem atender a meu pai, que gritava:



– Pedro, volta aqui imediatamente! Não te dei permissão para saíres da sala! Pedro!


Corri como uma seta até à cozinha, onde encontrei Diogo a comer uma sanduíche preparada por Cecília.



– Menino Pedro, – indagou Cecília, surpresa por me ver na sua cozinha, onde eu já poucas vezes entrava – quer uma sanduíche de carne assada? Estive agora mesmo a preparar uma para o meu filho.
– Não, Cecília, obrigado.


E depois de uma pausa, declarei:



– D. João VI está morto.


Creio que a dor que Cecília sentiu foi deveras profunda, pois para ela, mais sagrada do que família real, só a Sagrada Família. Diogo pôs-se de pé, naquilo que interpretei como um impulso de respeito para com o falecido rei. Mas parecia também preocupado.



– Quem é que lhe disse isso? – indagou Cecília, com uma vaga esperança de que não passasse de um boato.
– O padre Ricardo. Meu Deus, só agora me apercebo de que os deixei a meio da conversa...
– E que mais disse o padre Ricardo? – perguntou Diogo, sempre com o mesmo ar preocupado. – D. Miguel vai regressar de Viena?
– Não sei. Nem creio que o padre Ricardo o saiba. Aliás, nem creio que já tenha havido tempo para a notícia da morte do pai chegar a D. Miguel.


Diogo deitou uma olhadela à sua mãe, que se dedicava a dizer uma oração pelo monarca falecido e, discretamente, pegou no meu braço e arrastou-me dali para fora. Fomos novamente para as cavalariças, para não sermos surpreendidos por D. José.



– Pedro, – disse ele – acho que já está na hora de saber a verdade.
– Que verdade?
– O meu pai... era liberal.


Apesar de eu já ter percebido que as inclinações políticas de Diogo condiziam com as minhas, e apesar de me recordar vagamente que ele um dia me confessara que o seu pai se dava com liberais, a revelação não podia deixar de me surpreender, quanto mais não fosse pelo facto de o meu pai ter acolhido em sua casa a família de um liberal.



– E eu também sou, Pedro. – continuou.
– Mas tu sempre disseste...
– Se fui evasivo, foi para evitar ser a causa de um conflito entre si e o seu pai. Sabia que as suas ideias pendiam para o Liberalismo, mas não queria ser acusado de deitar lenha na fogueira.
– E o que é que te fez mudar de ideias? Foi por causa de o rei morrer?
– Não... O facto de Sua Majestade ter morrido vai causar muitas perturbações na paz interna do país e por isso temos de estar preparados para grandes mudanças, mas se só lhe conto isto agora é porque sinto que, nesta altura, se esse conflito entre si e D. José acontecer, já não serei eu a causa.
– Achas que é inevitável...
– Eu não disse isso.
– Mas sentes que é assim. Eu também o sinto. Sou um liberal e o meu pai é um absolutista. E eu, como liberal, posso até respeitar as opiniões dele. Mas ele, como absolutista, não respeitará as minhas.


E depois de uma pequena pausa, acrescentei:



– Estou feliz por teres confiado o suficiente em mim para falar do teu pai.


Diogo baixou a cabeça e, pela primeira vez desde que o conhecera, vi a serenidade que geralmente o acompanhava abandoná-lo para dar lugar à revolta. Vi que cerrava os punhos, vi as maçãs do rosto contraírem-se e vi-lhe os olhos brilhantes e húmidos, como se estivesse a ponto de chorar. Fazendo um enorme esforço para se controlar e conseguir falar, disse com voz rouca:



– Eles mataram-no. Eles mataram-no, Pedro!
– Eles, quem?
– Um grupo de absolutistas. Assassinaram-no.
Fiquei sem saber muito bem se deveria perguntar como se tinham passado as coisas ou se isso apenas ia contribuir para fazer Diogo reviver lembranças que decerto preferia esquecer. Foi Diogo, porém, que recuperando a sua calma habitual, acabou por me contar tudo, sem eu precisar de perguntar nada.



– Vieram de noite – disse. – O meu pai era um sonhador. Achava que o Liberalismo podia curar Portugal de todos os seus males. Agia com tanta ingenuidade... Costumava fazer discursos. A Polícia não o largava. Prenderam-no várias vezes, acusando-o de fazer arruaças. As suas palavras eram tão... infantis! Mas havia verdade no que dizia. Muita gente se sentiu incomodada. Não havia um único dia em que não recebêssemos ameaças. A princípio, a minha mãe morria de medo. Depois, aprendemos a ignorar. Talvez tenhamos ignorado demais... Uma noite, um grupo de homens embuçados assaltou a nossa casa e mataram o meu pai a tiro. Não eram ladrões, pois não levaram nada. Foram lá só para o matar. Eu tinha então oito anos. Só me lembro de agarrar a perna da minha mãe e de me sentir todo a tremer quando olhei para o corpo do meu pai. Os homens deixaram-nos ali, uma mulher e uma criança. A minha mãe gritava desesperada e eu não podia fazer nada. Nem sequer pude vingá-lo!...


Pus a mão sobre o ombro de Diogo, para tentar aliviar um pouco a sua dor. Ele continuou:



– Os nossos vizinhos, alertados pelos gritos da minha mãe, vieram ver o que se passava. E alguns ainda tentaram perseguir os assassinos, mas era tarde demais. Depois do enterro, eu e a minha mãe viemos morar para aqui. A princípio, a minha mãe receou que D. José não nos quisesse receber, por o meu pai ser liberal, mas ele disse que não deixaria desamparada a criada da sua esposa num momento tão difícil.


Fitei Diogo com verdadeiro respeito e admiração. Compartilhava da sua dor, não só como seu amigo, mas como liberal.



– Diogo, – disse-lhe – tenho muita pena pelo teu pai, mas fico feliz por teres confiado em mim para teu confidente.





















































































Sem comentários:

Enviar um comentário