domingo, 17 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo IV (PROVISÓRIO)

Para nós, crianças, o Natal parecia demorar-se uma eternidade. Mas por fim, a noite mágica chegou. No Roseiral, o Natal era um ritual que em pouco ou nada variava de ano para ano, mas apesar disso, trazia sempre consigo uma certa alegria que dava vida àquela casa, que durante o resto do ano se apresentava sombria.

O solar era enorme. Era o tipo de habitação que apenas um forte calor humano poderia encher. Talvez as coisas fossem diferentes se a minha mãe fosse viva, mas o meu pai era um homem amargo, que se tornava mais amargo ainda à medida que o tempo passava e os liberais se aproximavam do poder. E para além dele, apenas moravam no solar Cecília e os outros criados, que raramente se mostravam, e nós, crianças, que passávamos a maior parte do tempo nos terrenos da herdade. Os quartos e os grandes salões transmitiam uma desconfortável sensação de vazio, e embora eu fosse ainda muito pequeno para me aperceber disso, mais tarde, quando me aproximava da adolescência e os nossos conflitos começaram, aquele silêncio pesado afigurava-se-me insuportável e feria-me os ouvidos, mais do que um ruído intenso e contínuo.

No entanto, quando o dia 24 de Dezembro chegava, era como se abrissem uma janela de um velho castelo abandonado, fechado há muitos anos, e o sol entrasse, primeiro timidamente, para depois se espalhar por todos os cantos da casa.

O meu pai não tinha – para além dos filhos e de alguns parentes muito afastados e que moravam longe dali – familiares vivos. Não era, portanto, a maior quantidade de gente que vinha transformar o ambiente do solar, apesar do contributo que era a presença do padre Ricardo durante a ceia. Era a própria quadra natalícia que parecia ter aquele efeito benéfico, não só no solar, mas em todos os seus habitantes, sem excluir o habitualmente carrancudo D. José Ávila.

Quando o padre Ricardo chegava – invariavelmente, por volta das cinco e meia da tarde – o meu pai conduzia-o até à sala, onde ficavam a conversar. O meu pai acendia então a lareira, não tanto porque estivesse frio, embora isso não deixasse de ser verdade, mas principalmente porque tornava o lar mais acolhedor e cheio de espírito natalício. Acender a lareira era uma tarefa que, nos outros dias do ano, cabia aos criados. Mas na véspera de Natal, o meu pai fazia questão de ser ele a executar essa e outras pequenas tarefas.

Os temas sobre os quais as conversas dos dois adultos versavam eram sistematicamente a religião, sempre puxado pelo padre, e a política, tema favorito de D. José Ávila.

Apesar de, mais tarde, toda a minha vida vir a ser quase totalmente conduzida pela causa que abracei, nessa altura, não tinha idade para me interessar seriamente por nenhum desses dois assuntos.

Assim, enquanto a ceia não estava pronta, Diogo, Luz e eu brincávamos os três juntos na cozinha, pois como estava muito frio, Cecília tinha-nos proibido de ir lá para fora, e as nossas correrias não eram apropriadas para a sala onde o meu pai recebia o padre.
As nossas brincadeiras eram variadas, mas geralmente, cansados de correr de um lado para o outro, acabávamos por rodear Cecília, observando-a enquanto ela cozinhava. Principalmente, se estivesse a preparar as doçarias tradicionais da quadra.


– Já vos cheirou, não foi, seus diabinhos gulosos? – indagava ela, sem, no entanto, conseguir disfarçar uma íntima satisfação pelo interesse que os seus dotes culinários despertavam em nós.
E se a receita estivesse a correr bem e Cecília estivesse bem-humorada, acabávamos por ganhar um pratinho com um pouco de compota ou qualquer outra guloseima.

A parte mais triste do Natal chegava para mim – e também para Luz e Diogo – por volta das sete e meia. Chegada essa hora, Cecília mandava-nos vestir para a ceia e sabíamos que só voltaríamos a ver Diogo após o jantar. Não era diferente dos outros dias. Diogo jantava sempre antes de nós, para que Cecília ficasse livre para nos servir. Mas esse hábito, que durante o ano inteiro não nos incomodava significativamente, angustiava-nos na noite de Natal. Nessa noite, mais do que nunca, queríamos ter o nosso amigo connosco, sentado à nossa mesa, a partilhar da nossa refeição. Perdi a conta das vezes que Luz e eu martirizámos Cecília, pedindo-lhe que deixasse Diogo cear connosco.



– Não pode ser – respondia ela, com a paciência de uma santa. – Querem ver D. José zangado?


Esse argumento tirava-nos o alento para continuar a insistir. De qualquer forma, Cecília tinha de jantar antes de nós para nos servir, e Diogo não queria que a mãe jantasse sozinha na noite de Natal, pelo que não teria aceitado cear connosco.

Enquanto eu e Luz nos vestíamos, Cecília cobria a mesa da sala de jantar com a toalha de linho que a minha mãe trouxera juntamente com o seu enxoval e ia buscar o nosso melhor serviço de loiça, os talheres de prata e os copos de cristal. Pouco depois de Cecília informar o meu pai de que a ceia estava pronta, ouvíamos a voz dele a dizer-lhe que fosse buscar as crianças para em seguida servir. Luz e eu saíamos então dos quartos para o corredor, onde Cecília nos interpelava, ajeitava o meu colarinho, as pregas do vestido de Luz, e dava uma última penteadela aos nossos cabelos. A seguir, conduzia-nos à sala de jantar e fazia-nos ocupar os nossos respectivos lugares. O meu pai e o padre Ricardo já haviam ocupado os seus. Finalmente, a ceia era servida. A minha irmã e eu torcíamos o nariz ao bacalhau cozido. Éramos ainda demasiado crianças para saber apreciar a iguaria. Mas nunca nos conseguíamos esquivar a comer, pelo menos, um pedacinho. Contudo, o nosso sacrifício era generosamente recompensado pelas deliciosas sobremesas.

Após a ceia, o meu pai e o padre Ricardo recolhiam-se novamente à sala de estar, onde eu e Luz éramos obrigados a ficar também, para não sujarmos ou amarrotarmos o fato e o vestido, respectivamente. Quando soavam as dez e trinta, o meu pai, o padre Ricardo, Cecília e os outros criados seguiam para a igreja, onde o padre ia celebrar a Missa do Galo. O meu pai e o padre seguiam na frente, numa carruagem, logo seguidos por outras duas ou três, onde iam os criados. Mas antes de saírem, Cecília tratava de nos deitar para dormir.

Os adultos não regressariam antes da uma da manhã, por isso, mal saíram, Diogo e eu pulámos da cama, batemos à porta do quarto de Cecília, onde dormia Luz, e fomos os três para junto da chaminé, com esperança de ver o Pai Natal aparecer. Não tínhamos acendido nenhuma vela, mas havia lua cheia e as cortinas deixavam passar uma claridade azulada que dava à cozinha um aspecto místico. Olhávamos, curiosos, as caras uns dos outros, como se estivéssemos a ver fantasmas. Envolvia-nos uma estranha sensação, que era de medo mas, ao mesmo tempo, agradável. E como se receássemos quebrar o encanto, falávamos em surdina.



– A que horas é que ele chega? – indagou a minha irmã.
– Não sei, mas só depois da meia-noite – respondeu Diogo.


Durante cerca de meia hora, excitados com a ideia de ver o Pai Natal – e também por estarmos ali “clandestinamente” àquela hora – esperámos ansiosos. Mas depois, como o Pai Natal não viesse, as nossas pálpebras começaram a ficar pesadas. Luz foi a primeira a adormecer e pouco depois, Diogo dormia também. Olhei-os e comecei a sentir-me desconsolado. Teria o Pai Natal decidido não vir? Teríamos nós sido tão traquinas naquele ano que não iríamos receber presentes?
Tecendo estas considerações, acabei, eu próprio, por adormecer também ali mesmo. Despertei sobressaltado ao ouvir um ruído que imediatamente identifiquei como sendo de passos. Primeiro, estremunhado, demorei alguns segundos a perceber onde estava e o que estava ali a fazer, mas assim que me lembrei do nosso plano para ver o Pai Natal, pus-me de pé e escutei atentamente. Os passos aproximavam-se rapidamente. Seria ele? Deveria acordar os meus companheiros? Mas de repente, lembrei-me de que o Pai Natal entrava nas casas pela chaminé, pelo que não fazia sentido eu estar a ouvir passos vindos de qualquer outra parte da casa. Quem seria? O mistério não ficaria muito tempo sem explicação, pois Cecília apareceu e fitou-nos, entre espantada e zangada.


– Meninos, o que é que estão aqui a fazer?


Embora tivesse falado baixo, a sua voz era tão enérgica que ambos os meus companheiros despertaram.



– Diogo – disse. – O que é que fazes a pé? E vocês os dois também. Cheguei agora e como não vi a menina Maria da Luz no quarto, procurei-a por todo o lado. Já imaginaram se D. José sabe disto? Tiveram sorte por ele se ter ido deitar sem dar por nada. Que vieram fazer para aqui?
– Cecília, nós só queríamos... – começou Luz.
– Queriam o quê?
– Queríamos ver o Pai Natal – confessou ela, de olhos baixos e envergonhados.


Cecília não pôde deixar de rir.



– Ah, então é isso! Mas vocês não o vão ver.
– Porquê?
– Talvez vocês não saibam, mas o Pai Natal é muito tímido. Não gosta de ser visto e enquanto não estiver toda a gente a dormir, ele não entra.
– A sério?
– A sério.


Entreolhámo-nos os três, algo desiludidos. Então, nunca veríamos o Pai Natal.



– Vá, vão-se deitar – recomendou Cecília. – Rápido, se querem que o Pai Natal vos deixe alguma coisa. E toca a dormir!


Bocejando e esfregando os olhos, obedecemos e seguimos para os nossos quartos. Não sei dizer se Luz adormeceu de imediato ou se lhe custou a recuperar o sono, mas quanto a mim e a Diogo, bastou-nos encostar a cabeça nas respectivas almofadas para recomeçarmos a nossa viagem interrompida pelo mundo dos sonhos. Na manhã seguinte, apesar de termos ficado a pé até tão tarde, despertámos bem cedo.



– Bom dia – disse-me Diogo, assim que abri os olhos.
– Bom dia – respondi, ainda encolhido debaixo do calor dos cobertores.
– Que frio está hoje!
– Cheira a Natal!


Diogo riu-se da minha exclamação, mas creio que no fundo, sentia o mesmo.



– Vamos ver a chaminé! – lembrei.
– Não deveríamos esperar por Luz?
– Já deve estar a pé.
– Então, vamos!


Vestimo-nos o mais rápido que nos foi possível e corremos ao encontro dos nossos presentes. Como eu previra, Luz já se tinha levantado e encontrámo-la junto da chaminé, a olhar, maravilhada, para os embrulhos, e a lutar com a tentação de os abrir antes de nós chegarmos.



– Ah, até que enfim! Mas que preguiçosos. Venham, vamos ver o que o Pai Natal nos trouxe!


Não foi preciso repetir. Diogo, Luz e eu atacámos os embrulhos com os respectivos nomes e verificámos, com satisfação, que os nossos pedidos tinham sido atendidos.
































































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