quarta-feira, 13 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo II - (PROVISÓRIO)

Coisa rara e nunca vista, nesse dia, acordei antes de Diogo. Não acostumado a ter de esperar que o meu companheiro de brincadeiras acordasse, senti-me algo aborrecido. Estive tentado a acordá-lo, mas não me pareceu justo e fui-me pôr à janela. Devo confessar que, no fundo, esperava que o sono de Diogo fosse quebrado pela claridade. Mas acabei por esquecer o meu amigo à medida que me dedicava a contemplar a beleza da herdade, resplandecente naquela manhã de Verão. Como as árvores estavam bonitas! Não tinha havido demasiado calor nesse ano e as terras eram bem irrigadas, pelo que as flores se mantinham viçosas, como se a Primavera se prolongasse. E naquele momento, exibiam toda a sua beleza só para mim! Tentei alcançar o rio com a visão e embora isso me fosse impossível, quase ouso jurar que conseguia ouvir o sereno correr da água. Só não sei dizer se de facto podia ouvi-lo ou se o meu próprio desejo me fazia pensar que sim.
Pareceu-me ouvir uma voz muito ao longe, mas não senti o instinto de me pôr à escuta e tentar perceber o que dizia, até que senti uma mão poisar no meu ombro e vi que a voz estava ali mesmo, ao meu lado. Era Diogo, que já se levantara e me dizia que nos devíamos vestir, pois em breve a sua mãe viria chamar-nos.



– Vou falar com o meu pai sobre os liberais – confessei-lhe, atento à sua expressão.



Diogo fitou-me com um ar preocupado, mas não havia censura no seu olhar. Creio até que distingui uma certa aprovação. É curioso como me lembro de Diogo em momentos como esse. Diogo era uma criança. Um ano a menos que eu, era em tudo uma criança. Costumava brincar connosco e parecia sentir-se tão entediado quanto eu ou Luz no mundo entediante dos adultos. Contudo, a sua sensatez não era a sensatez de uma criança.



– O que achas? – perguntei, curioso.
– Acha que ele não lhe vai bater ou ralhar?
– Acho que não... O meu pai nunca me bateu e acho que não me ralha só por perguntar. Além disso... não tenho medo nenhum.
– Bom, o senhor é que sabe.



Ah, como eu ficava irritado por Diogo insistir em chamar-me “senhor” e não me atender quando lhe dizia que me tratasse por tu! Diogo e eu éramos como irmãos. Eu gostava dele como de um irmão e tinha a certeza de que o sentimento era mútuo. Dormíamos no mesmo quarto, brincávamos juntos e ainda assim, ele tinha de me ver sempre como o filho do patrão. Um dia, fiquei tão zangado que o ameacei de que se ele não parasse com aquela atitude servil, nunca mais lhe falava. Diogo ficou muito magoado e não me pediu que voltasse atrás, mas continuou a tratar-me como sempre me tinha tratado. Eu, ao fim de meia hora, já esquecera tudo, como qualquer outra criança teria feito, e fiquei admirado ao encontrar Diogo triste e sozinho.



– Diogo, – disse-lhe – a Luz encontrou um coelhinho branco. Não queres vir vê-lo?
– Pensei que estivesse zangado comigo...
– Porque haveria de estar zangado?
– Disse que não falava mais comigo...
– Ah, então é isso! – interrompi. – Diogo, eu não queria que ficasses triste...
– O senhor não percebe. Se eu o tratasse por tu, a minha mãe esfolava-me vivo! Nós somos criados e os criados não podem tratar os patrões por tu. O seu pai também não ia gostar nada.
– Mas eles não precisavam de saber. Ficava a ser um segredo nosso. Meu, teu e da Luz. Ou também podemos não dizer nada à Luz, se preferires.
– Mas isso seria mentir e eu não quero mentir. Não quero enganar a minha mãe nem o seu pai. Oiça, seja como for que eu o trate, a estima que lhe tenho é a estima de um grande amigo, talvez mesmo de um irmão. Se puder aceitar as coisas assim, tudo bem. Senão, talvez não devamos ser amigos. Palpita-me que é por coisas assim que D. José não gosta de liberais.



Fiquei algo confuso. Para mim, era bem claro que se o meu pai não gostava de liberais, só podia ser porque eles eram maus. Mas o motivo que Diogo apontava era bem diferente. Foi a partir desse momento que a minha curiosidade por esses homens começou a crescer e agora, finalmente, estava decidido a falar sobre o assunto com o meu pai.
O meu pai estava fora. Tinha viajado para o Porto e só se esperava o seu regresso daí a duas semanas. Mas cerca de três dias depois de eu ter confidenciado a minha decisão a Diogo, a carruagem em que partira aproximou-se da casa e dela desceu o meu pai.



– Parece que vai ter a sua oportunidade mais cedo do que esperava.



Diogo tinha razão. Eu não estava à espera que o meu pai regressasse tão depressa e não me sentia minimamente preparado, mas por outro lado, sentia que se não o fizesse agora, nunca teria coragem para o fazer.
Almoçámos em silêncio quase total, como de resto era costume. O meu pai não tinha muito jeito para comunicar com crianças. Mas desta vez, o silêncio incomodava-me mais do que era habitual. O meu pai, porém, não notou nada e só estranhou o meu comportamento quando a minha irmã pediu licença para se levantar da mesa e eu continuei ali, quieto, de olhos postos no chão, sem o conseguir encarar.



– Pedro, o que se passa? – perguntou. – Porque não vais brincar com a tua irmã?



E vendo que eu não respondia:



– Fizeste algum disparate enquanto eu estive fora?
– Não, senhor. – respondi, sem erguer a cabeça.
– Então, o que se passa?



Subitamente, enchi-me de coragem e disparei:



– Pai, porque não gosta dos liberais?



O meu coração batia tão descompassadamente como os minúsculos coraçõezitos dos pardais e outras aves assustadas que eu, Diogo e Maria da Luz costumávamos perseguir. Sentia-me admirado com a minha própria ousadia. Como fora eu capaz de chegar a fazer tal pergunta? O meu pai olhava-me cheio de surpresa. Pensei que, no mínimo, me mandaria de castigo para o quarto durante o resto do dia, mas afinal, as coisas passaram-se de modo bem diferente.



– Ouve, Pedro – disse o meu pai, levantando-se. – Ainda és muito novo para entender essas coisas, mas fico feliz por já te interessares. Não quero maçar-te com coisas que ainda não podes compreender. Só precisas de saber que eu não gosto deles porque eles não prestam. Quando cresceres, entenderás porque é que não prestam e então, serás um absolutista, como eu.
– E se não for?



O meu pai virou-se com brusquidão. Vi que as suas faces se tingiam de cólera, mas a rigidez do seu rosto deu lugar a um sorriso quando se apercebeu de que estava a lidar com o seu filho de oito anos.



– Tenho a certeza de que serás. Não quererias trair o rei, pois não?



Senti-me confuso. Durante a conversa que o meu pai tivera com o antigo caseiro, ele manifestara claramente o receio de que a presença de D. João VI pudesse ser benéfica para os liberais. Como se explicava então que, sendo o rei liberal, eu o trairia sendo-o também?



– Mas, senhor... O rei não é liberal?
– Céus!... Onde vais tu buscar essas coisas? Bom, não interessa. Sua Majestade apenas foi enganada por esses malfeitores. Mas quando cair em si, verá que é nos absolutistas que deve confiar.



Por algum motivo, toda aquela argumentação não me deixava convencido. Creio até que quanto mais o meu pai depreciava a imagem dos liberais, mais eu simpatizava com eles. Quanto mais não fosse, para sentir o prazer de fazer frente a D. José Ávila.
Quando saí da sala, Diogo e Luz aguardavam-me, ansiosos. Puxaram-me para fora de casa, examinaram-me de alto a baixo e depois de verificarem que não havia nada que indicasse que o meu pai tivesse sido violento, Luz perguntou:



– Então? Falaste dos liberais? O que foi que ele disse?
– Que eles não prestam...
– Só isso? – indagou Luz, desiludida. – Isso já nós sabíamos.
– Disse que são traidores, que traem o rei.
– Isso não é verdade! – exclamou Diogo.



Tanto eu como Luz olhámos o nosso amigo com o mesmo espanto com que o meu pai me fitara quando lhe perguntei porque não gostava de liberais. Diogo nunca se revelara nem a favor nem contra os liberais. Sempre procurara fazer-nos acreditar que sabia tão pouco do assunto como nós e no entanto, afirmava veementemente que eles não eram traidores.



– Porque dizes isso? Gostas dos liberais?
– Gostar deles? Não... Quer dizer, não sei. Não conheço nenhum, tal como vós os dois.
– Mas acabaste de dizer que não eram traidores – objectou Maria da Luz.
– Sim, mas isso não quer dizer que sejam boas pessoas. Além disso, dizer que Sua Majestade se deixa rodear de um tão grande número de traidores é fazer pouco da sua inteligência.



Luz e eu entreolhámo-nos, sem perceber muito bem o que todo aquele discurso queria dizer.

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