sexta-feira, 8 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DE UM LIBERAL Capítulo I (PROVISÓRIO)

Bom, quando escrevi esta história, que iniciei em algum momento da adolescência, e que demorei algum tempo a concluir, três coisas me influenciaram. Por um lado, tendo ainda relativamente fresco na memória o romance Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, queria escrever uma história de aventura e amizade. Por outro, andando na altura a estudar o Romantismo, quis tentar compor uma narrativa que incluísse pelo menos algumas das características dessa corrente literária. Daí o tom algo trágico do final. Por fim, para o fazer, tentei encontrar um tema que se enquadrasse no Portugal dessa época, e como sempre tinha tido um certo fascínio pelas lutas entre liberais e absolutistas (para o que contribuiu, na altura, o livro Uma Aventura em Évora Monte, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada), resolvi escrever a história em torno desse assunto.
De momento, é-me impossível encontrar tempo para uma revisão tão profunda como gostaria de fazer antes de a colocar aqui, não só a nível do rigor histórico mas também da construção da própria narrativa, por isso, limitar-me-ei a corrigir um ou outro pormenor da história e a fazer algumas correcções em nome de um melhor português. Talvez um dia (mas não tão cedo) ainda venha a fazer essa revisão mais profunda. Por enquanto, aqui ficam a introdução e o primeiro capítulo.

Memórias de Um Liberal

INTRODUÇÃO


Não sei bem dizer o porquê de escrever este livro. Poderia talvez dizer que escrevo para glória de um homem, o melhor que já conheci. Mas ele seria o primeiro a dizer-me que não desejava ser louvado e eu não quero ir contra a sua vontade.

Talvez o fizesse mais feliz se dissesse que o livro não é apenas para sua glória, mas para glória de todo o nosso bando, de todo o grupo que compartilhou connosco aqueles anos loucos de lutas e de emoções tão fortes e por vezes tão estranhas.
Hoje, estão todos mortos. Sou eu o único sobrevivente. Eu, que sem dúvida merecia menos a vida do que qualquer um deles.
Ah, parece-me já estar a ouvir o bom do Diogo a criticar-me pela minha modéstia. Bom, Diogo, se isso te consola, eu também sou um liberal e, uma vez que pretendo dedicar este livro a todos os liberais, não me excluo da dedicatória.
Quanto tempo já passou desde a nossa vitória? Sete anos? Não, oito. Oito anos. Lembro-me perfeitamente daquele dia...
Bom, não quero começar a divagar antes do tempo. Não foi para isso que me propus escrever. Antes de mais nada, para que as pessoas fiquem impedidas de esquecer quão importante é lutar pela liberdade, e para que os mais jovens tenham um exemplo a seguir, é preciso dar a conhecer a nossa história.


CAPÍTULO I


Foi no Verão de 1820 que Diogo veio viver connosco para Coimbra. Tinha eu apenas nove anos e Diogo menos um, mas ninguém diria que era ele o mais novo, de tão responsável que já se mostrava. Era filho da nossa criada, Cecília.
Cecília era criada na casa de minha mãe antes de ela se casar e acompanhara-a até ao Solar do Roseiral, onde continuara a servir mesmo depois da morte dela. Mas Cecília não vivia connosco. Vivia com o marido e o filho numa casa que tinham conseguido comprar e ia dormir a casa todas as noites. Contudo, quando o marido morreu, o meu pai ofereceu-se para a acolher como criada interna, juntamente com Diogo, o que Cecília aceitou de imediato, pois não tinha vontade de ficar a viver sozinha com o filho na casa onde vira o marido falecer. Vendeu a casa e veio morar com o filho no Roseiral.
Tornámo-nos amigos quase de imediato – não só nós os dois, mas também Maria da Luz, minha irmã, que tinha nessa altura os seus seis anos – e depressa adquirimos o hábito de brincar os três juntos na imensidão da herdade da minha família.
Nessa altura éramos apenas três crianças que pouco entendiam das mudanças que se operavam no país e não compreendíamos a preocupação do meu pai sempre que se falava na possibilidade de uma vitória liberal. No entanto, havia no ar um cheiro a guerra e como crianças que éramos, farejávamos e perseguíamos o perigo, a aventura. E o dia 25 de Agosto desse mesmo ano foi dia grande balbúrdia.
Eu e Diogo partilhávamos o mesmo quarto. Luz dormia com Cecília, pois o meu pai achava que agora que Cecília vivia no Roseiral, não havia necessidade de deixar a minha irmã sozinha de noite.
Mas como eu dizia, esse dia começou por ser agitado logo de manhã. O meu sono era – e ainda é – bastante pesado, mas mesmo assim, os gritos furiosos de meu pai foram o suficiente para me acordar. Esfreguei os olhos estremunhado, sentei-me na cama e tentei perceber o que se passava. Olhei para o meu lado esquerdo e vi que Diogo também já estava desperto e à escuta.


– Que se passa? – indaguei.
– Estão a falar dos liberais outra vez. Parece coisa séria.
– Para o meu pai, os liberais são sempre coisa séria...
– Sim, mas nunca o vi tão zangado. Deve ter acontecido algo de grave. Ora oiça como ele pragueja.


Segui o conselho. Diogo tinha razão. O meu pai gritava e amaldiçoava os liberais com tanta raiva que chegava a assustar-me.


– Tem a certeza disso? – perguntava, em tom exaltado.
– Ora, acha que o vinha alarmar com tal assunto se não tivesse? – respondia a voz que reconheci como sendo a do nosso antigo caseiro, que agora vivia no Porto. – Eu estava lá. Assisti a tudo. Vim o mais depressa que pude, pois sei que V. Excelência gosta de estar informada e eu não esqueci a minha lealdade para com um patrão que foi tão generoso. É como lhe digo: os liberais revolucionaram-se.
– Espere lá, venha sentar-se aqui na minha sala e conte-me tudo o que se passou.


Eu e Diogo entreolhámo-nos e nem foram precisas palavras para nos entendermos. Num ápice, saltámos das respectivas camas e, mesmo em camisas de dormir, fomos escutar para a porta da sala.


– Ora conte lá – dizia o meu pai.
– Bom, as tropas da guarnição do Porto foram até ao Campo de Santo Ovídio declarar-se contra o Governo absolutista. O Coronel Sepúlveda deu a ordem, ao que parece.
– Mas foi só isso? Então, não foi bem uma revolução...
– Bem, não houve mortes nem violência...
– Ora, homem! Você quase me mata do coração por causa de uma coisa sem importância.
– Oh, não, Sr. D. José! A coisa tem importância. Os liberais exigem o regresso do rei e uma nova monarquia, regida por uma constituição. A população estava toda do lado deles. O senhor havia de ter visto... É bem capaz de D. João VI voltar.
– Ora, D. João VI... D. João VI é um fraco. Não tem estofo para aguentar esta luta. Porque regressaria agora, sabendo não ser capaz de derrotar os absolutistas?
– É como lhe digo. D. João pode ser um homem fraco, como V. Excelência diz, mas não está só. O povo está todo do lado dos liberais. Isto para não falar da burguesia.
– Ah, a burguesia! – exclamou o pai, irritado.


Devo esclarecer que para o meu pai, os burgueses formavam a pior espécie de homens que havia no mundo. Tinha-lhes um ódio visceral. O meu pai tinha em grande conta o seu estatuto de nobre. Talvez em maior conta do que a própria fortuna, que daria – não tenho a menor dúvida – para salvar o título e o lugar na alta sociedade. Afirmava que havia em ser nobre, principalmente de linhagem já antiga, como ele era, algo de muito especial. E receava que deixasse de o ser.
Do povo, não vinha perigo. Os homens do povo labutavam arduamente para ter uma vida digna e não tinham tempo para se dedicarem a tentar escalar os degraus da sociedade. Talvez por isso, o meu pai respeitava-os e até mantinha boas relações com eles. Mas com os burgueses era diferente, pois estes eram pessoas economicamente desafogadas e que podiam dedicar-se a tentar alcançar o degrau da nobreza, ameaçando assim o seu pedestal. O meu pai odiava a ideia de ter de partilhar esse pedestal cada vez com mais pessoas, e talvez porque os liberais ameaçavam a sua segurança nesse ponto, ele detestava-os.


– A burguesia – continuou – é o flagelo deste país!
– Pois sim, mas isso não os vai impedir de ajudar os liberais.
– Isto é, de facto, muito grave. Em si, esta revolução pode não o ser, mas se D. João vier...
– Vai fazer alguma coisa?
– Não. Por enquanto, não. Vou esperar para ver se acontece mais alguma coisa.


Percebendo que a conversa sobre os liberais iria, certamente, ficar por ali, Diogo e eu voltámos para o quarto antes que Cecília nos viesse chamar.


– Os liberais devem ser muito maus... – declarei, pensando que só assim se explicava todo o ódio do meu pai por esses homens.
– O meu pai gostava deles.
– Então, talvez devêssemos ser inimigos.
– Conhece algum liberal?
– Não.
– Então, não há razão para sermos inimigos. Quem sabe se não gostaria dos liberais?
– Tu conheces algum?
– Nunca conheci nenhum assim de perto, mas às vezes, à noite, o meu pai recebia a visita de liberais e eu ficava a escutar, como agora escutámos o seu pai.


Alguém bateu na porta do nosso quarto e uma voz feminina perguntou:


– Meninos, já estais acordados?
– Sim, Cecília. Estamos os dois a pé.
– Então, vistam-se e venham tomar o pequeno-almoço.


Obedecemos e enquanto nos vestíamos, continuámos a nossa conversa.


– Diogo, – perguntei – de que falavam esses liberais com o teu pai?
– Bom, falavam muito de D. João VI. E falavam de uma constituição.
– O que é uma “construição”?
– Não é “construição”. É constituição. Não sei o que é, mas parece que é isso que os liberais querem.
– E porque não lhes dão essa coisa?
– Sei lá!


Já vestidos, saímos a correr do quarto em direcção aos respectivos pequenos-almoços, mas fomos detidos por Cecília, que nos inspeccionou para ver se não nos tínhamos esquivado da higiene matinal, nos endireitou os colarinhos e tentou – sem grande êxito – alisar os nossos cabelos rebeldes. Em seguida, Diogo seguiu Cecília para tomar o pequeno-almoço com ela na cozinha e eu entrei na sala, cumprimentei respeitosamente o meu pai e puxei discretamente uma das tranças loiras da minha irmã, que já se encontrava à mesa e me olhou com ar furioso sem nada dizer.


– Oiçam, meninos – disse o meu pai. – Aconteceu uma coisa importante no Porto e talvez tenha de me ausentar.


Eu e Luz entreolhámo-nos e sorrimos. Isso queria dizer que ou ele nos levaria consigo ou ficaríamos com a casa por nossa conta, apenas com Cecília para tomar conta dos três. E quem sabe, talvez durante a ausência de meu pai pudéssemos tomar o pequeno-almoço juntos. Talvez até todas as refeições. De uma maneira ou de outra, a situação agradava-nos.


– Não sei quanto tempo vou estar fora, por isso, não os posso levar. A Cecília fica para tomar conta de vós, mas prometam que não vão dar muito trabalho.


Com as caras de anjo que todas as crianças fazem quando são confrontadas com esse pedido, prometemos que nos portaríamos bem. O meu pai partiu no dia seguinte e nós ficámos a ver a carruagem afastar-se e desaparecer.
Cecília anunciou que ia polir as pratas, pois era quarta-feira e ela fazia sempre isso às quartas-feiras. Diogo, Luz e eu corremos para o ribeiro que corria nas nossas terras e lá ficámos a brincar aos absolutistas e liberais, ora fazendo de uns, ora fazendo de outros, embora sem perceber muito bem o que isso queria dizer.


– Luz – disse eu. – Tu fazes de absolutista.
– Não! Quero fazer de liberal.


Sorri para mim mesmo. Maria da Luz gostava de fazer exactamente o contrário do que lhe mandavam, e a minha intenção ao sugerir que ela fizesse de absolutista era que ela quisesse fazer de liberal.
– Bom, está bem. Então, eu faço de absolutista. E tu, Diogo?
– Hum... Eu faço de D. João VI! – exclamou o meu amigo, entusiasmado pela conversa que o meu pai tivera com o caseiro no dia anterior.
– Mas D. João VI está no Brasil...
– Pois vamos fazer de conta que eu sou D. João VI e volto do Brasil.
– E de que lado está ele? – indagou Luz.


Diogo e eu entreolhámo-nos, confusos. Não sabíamos bem o que responder.


– Bem, acho que está do lado dos liberais... – arrisquei.
– Também me parece – confirmou Diogo.


E como os liberais e absolutistas tinham de lutar, nós lutávamos. Mas não sabíamos porque lutavam e também não sabíamos porque lutávamos. E vencíamos e perdíamos, e cansados da correria, parávamos, ríamos, lavávamos os rostos suados na água do ribeiro e deixávamos de ser liberais e absolutistas para voltarmos a ser o Pedro, o Diogo e a Maria da Luz.
Cecília veio chamar-nos para almoçar e como nós imaginávamos, pudemos comer todos juntos. Porém, a nossa boa Cecília pareceu algo atrapalhada quando lhe perguntei porque tínhamos de comer na cozinha e não na sala.


– Bom, menino Pedro, não estaria certo...
– Porquê?
– Eu e Diogo somos criados. Não nos podemos sentar à mesa da sala.
– Então, porque é que nós nos podemos sentar à mesa da cozinha? – estranhou Luz.
– Não poderiam se o vosso pai cá estivesse, mas visto que não está e vocês ainda são duas crianças, comem aqui para não terem de comer sozinhos.


Subitamente, uma curiosidade invadiu-me o espírito.


– Será que os liberais se sentam na mesma mesa que os criados?


A pergunta pareceu preocupar e até assustar Cecília, que empalideceu e indagou em tom de reprovação:


– Quem lhe mete tais coisas nessa cabecita? O seu pai havia de ficar muito contente, se o ouvisse falar dos liberais. Esqueça lá isso e toca a comer.


Envergonhado pelo efeito que a pergunta tivera sobre a mãe do meu amigo, trinquei o meu pão, mastiguei e engoli, mas no curto espaço de tempo desse ritual, uma outra pergunta formulava-se já na minha cabeça e a medo, arrisquei:


– Cecília... gosta dos liberais? Ou acha que o meu pai tem razão acerca deles?
– Valha-me Deus! – exclamou a pobre Cecília, assustada. – Porque haveria de gostar de liberais? Não gosto nem deixo de gostar.


E em severo tom de aviso, acrescentou:
– Por favor, menino, não comente essas coisas com o seu paizinho.


A cismar com aquela implicância com os liberais, dediquei-me a comer o meu pão, absorto em pensamentos que se afastavam dali, de Cecília, de Maria da Luz e de Diogo. Despertei com um berro de Maria da Luz e vi, divertido, que Diogo se divertia a puxar-lhe as tranças, que era – de todas as nossas traquinices – a que mais irritava a minha irmã. Cecília, que já tinha almoçado e nos deixara a sós a terminar a nossa refeição, correu até à cozinha ao ouvir o grito de Luz.


– Diogo! – ralhou. – Já te disse que não apoquentasses os meninos! Queres que faças queixa a D. José?


Todos empalidecemos. Que faria o meu pai se soubesse que o filho da criada adquirira o hábito de puxar os cabelos da sua filha, ainda que numa brincadeira inocente? Acho que nem a própria Luz desejava que tal acontecesse.


– Bom, – declarou Cecília, verificando que nos assustara mais do que tinha pretendido – não se preocupem. Sejam bons meninos e não terei de fazer queixa nenhuma a D. José quando ele voltar. Agora, vão brincar lá para fora.










































































































































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