quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A CASA ABANDONADA Capítulo V - FIM (PROVISÓRIO)

V

Durante todo um mês, Ema e Daniel presenciaram acontecimentos estranhos. Isolados, nenhum deles parecia ter grande importância e Daniel parecia sempre achar uma explicação lógica para tudo, ainda que nem sempre convencesse a mulher, mais dada a misticismos.
Na verdade, Ema começava a pensar que talvez aquela velha casa tivesse mesmo fantasmas. Lembrou-se das histórias da avó e pensou se seria possível que o casarão, de tanto ter servido de palco a histórias sobrenaturais, se tivesse tornado verdadeiramente habitação de entes de outro mundo. Mas acabava por afastar tais pensamentos com um encolher de ombros.
– Que disparate... Se vou acreditar nisso, acredito em qualquer tolice que me contem...
E nem sequer mencionava essas reflexões ao marido, com receio de que ele achasse que estava ficar maluca.
Contudo, houve um acontecimento que a impediu de duvidar por mais tempo. Um dia, ao entrar no quarto, reparou que estava uma pulseira de ouro em cima da cama. Não era sua. Nem de nenhum pulso adulto, pois era demasiado pequena. Sentiu o coração bater descompassadamente e quase teve receio de se aproximar... Sentou-se ao seu lado, sem lhe tocar. Conhecia-a... Tinha uma medalha, mas a inscrição estava voltada para baixo. Lutou consigo própria para se permitir tocar-lhe. Sentiu a malha, delicada, fina, tão frágil... Foi só quando um soluço lhe morreu na garganta que percebeu como estava emocionada. Virou lentamente a medalha, quase como se receasse o que ia encontrar. Leu a inscrição e levou as mãos aos lábios, incapaz de impedir as lágrimas.
Com amor
da E. para a B.
Olhou à sua volta, esperando ver algo que lhe desse outro sinal, mas estava tudo calmo e silencioso. Demasiado silencioso. Fechou a pequena pulseira na mão e apertou-a contra o peito. Depois, levantou-se e foi até ao andar de baixo. Ao descer as escadas, sentia as pernas tremerem de tal maneira que se agarrou ao corrimão com medo de cair. Tentou pensar no que devia fazer, mas não conseguia pôr ordem na sua cabeça. Telefonar a Daniel e dizer-lhe o que tinha acontecido? Ele ia pensar que estava doida... Não, falava com ele quando chegasse e lhe pudesse mostrar a prova. Chamar a mãe? Não, ela odiava-a desde que Beatriz morrera. Achava que a culpa fora sua. E Ema também acreditava nisso, embora tentasse escondê-lo de si própria. Se, pelo menos, a avó fosse viva... Todos os familiares de quem se conseguia lembrar estavam mortos ou demasiado longe para virem em seu auxílio. Talvez pudesse convidar uma amiga... Não lhe contaria nada do que se tinha passado, pois ninguém iria acreditar. Para todos os efeitos, seria apenas um convite para lanchar e conversar um pouco. Pelo menos, não estaria sozinha. Mas, pensando melhor, estaria demasiado perturbada para agir com naturalidade. Ema não era capaz de pôr em prática nenhum dos seus pensamentos. Ficara completamente sem acção. Limitou-se a ficar sentada no sofá da sala, apertando a pulseira contra o peito e incapaz de parar de chorar.
Quando Daniel chegou, horas depois, ainda estava imóvel, na mesma posição. Já não chorava, mas parecia fitar um ponto imaginário no infinito. Não deu pelo marido entrar. Tinha um ar abatido e exausto. Estava pálida como se tivesse estado doente durante vários dias. Daniel aproximou-se, preocupado.
– Ema? Estás bem? – Perguntou, colocando-lhe uma mão sobre um joelho.
O contacto físico despertou-a. Ema abraçou Daniel como se não o visse há meses.
– Ainda bem que chegaste!
– Ema! O que é que tens? Estiveste a chorar?
– Finalmente, percebi tudo!
– Do que é que estás a falar?
– Já sei quem comeu o bolo e trouxe a rosa... E todas aquelas outras coisas que não sabíamos explicar.
– Quem foi?
– Foi ela!
– Ela, quem?
Ela! A Beatriz... Ela também sabe que a culpa foi minha e quer-se vingar...
A princípio, Daniel não percebeu do que Ema estava a falar. Não conhecia nenhuma Beatriz... Mas depois, lembrou-se.
– Ema, Ema... Não estás realmente a pensar... Ema, a tua irmã morreu há quase vinte anos! Pensa bem, como é que podia ser ela?
– O corpo nunca foi encontrado...
– Sabes muito bem porquê.
– Sim. Caiu ao rio e foi arrastada pela corrente... Pelo menos, foi o que disseram.
– É a única conclusão lógica. Se ela não tivesse morrido, porque só apareceria agora?
– Mas eu não disse que ela não morreu... Morreu, sim, mas quer castigar-me, atormentar-me... Fui eu que a desafiei para irmos brincar ao pé do rio... Distraí-me por uns minutos e, quando reparei, ela tinha desaparecido...
– Isso que estás a dizer... é uma loucura!
– Eu sei. Mas desta vez, ela deixou a prova. Ela quis que eu soubesse que era ela! A pulseira que a minha avó comprou para eu lhe oferecer nos anos. Igual à minha, que ela me ofereceu, no mesmo dia. Está aqui, na minha mão! Vê, vê e diz-me se é imaginação minha!
Mas quando Ema abriu a mão, já lá não estava nada. Ema ergueu-se de um pulo.
– Não pode ser! Tinha-a na minha mão! Ela quer enlouquecer-me!...
Daniel tentou fazer Ema perceber que tudo não passara de uma partida da sua imaginação.
– O problema é esta casa – disse. – Há aqui um certo ambiente de misticismo e tu mesma costumavas dizer que a tua avó te contava histórias de fantasmas acerca deste lugar. Não estou a dizer que estejas doida, mas tudo isso, juntamente com o cansaço de teres tornado esta casa habitável em tão pouco tempo... Anda, vamos jantar, dormir, e vais ver que amanhã tudo te parecerá um sonho.
Ema pôs o jantar na mesa, mas mal lhe tocou. Daniel não insistiu, pois achava que aquilo de que ela verdadeiramente precisava era de descansar. Deitaram-se cedo e cedo adormeceram. De manhã, Daniel voltou a sair para ir trabalhar, deixando Ema ainda deitada. Mas não por muito tempo, pois Ema foi sobressaltada pelo rumor de vozes no andar de baixo e desceu apressadamente. Encontrou a televisão ligada. Desligou-a, tentando convencer-se a si própria que fora Daniel que a acendera e que se esquecera de a apagar antes de sair. No entanto, poucas horas depois, sem que ninguém tivesse entrado em casa, a televisão estava de novo ligada.
– Mas o que é que tu queres, Beatriz?! – gritou ela, como se esperasse resposta. – Queres dar comigo em doida?
Ninguém lhe respondeu. Quando chegou, Daniel perguntou-lhe se tinha acontecido alguma coisa.
– Ela está aqui. Eu sei.
– Ema, por favor! Se não paras com isso, deixamos esta casa e acabou-se!
Mas, apesar de tudo, havia algo que fazia com que Ema não desejasse ir-se embora. Não sabia porquê, mas apesar de o espírito da irmã só ter começado a atormentá-la naquele lugar, e apesar de sentir que, se de lá saísse, tudo terminaria, ela não queria sair.
Nos dias que se seguiram, resolveu não contar mais nada a Daniel. Não via o sentido de lhe contar, se ele não acreditava. As pequenas coisas estranhas que tinham acontecido e que ambos tinham presenciado deixaram de ser visíveis para Daniel à medida que se foram tornando mais inexplicáveis. Não lhe contou da torneira da cozinha que aparecera aberta, nem dos livros caídos na biblioteca, nem da boneca que aparecera e desaparecera em cima da sua cama, tal como a pulseira. Tentou agir como se nada se passasse, mas não conseguia comer e de noite, acordava sobressaltada, julgando ouvir chamar o seu nome. Daniel dizia-lhe que fora só um sonho e ela respondia-lhe que tinha razão, mas já não conseguia voltar a adormecer. Tornou-se magra e pálida e as discussões sobre a mudança de casa sucederam-se.
– Por favor, Ema! – disse-lhe uma vez Daniel. – Olha para ti! És uma sombra do que eras antes de virmos para aqui. Tu é que já pareces um fantasma. Julgas que estou só a ser teimoso, mas não é nada disso. Não sei por que motivo te queres sujeitar a esta tortura, mas, pelo menos, já pensaste que isto também me está a afectar a mim? Julgas que não é difícil para mim ver-te nesse estado?
– Compreendo. Ouve, Daniel. Sei que não tenho sido boa companhia ultimamente, e se te queres ir embora, não te levo a mal. Mas eu fico.
Daniel chegou a pensar que seria o melhor a fazer. Talvez, vendo-se sozinha com os seus fantasmas, ela acabasse por desistir e sair de lá. Mas teve receio de que a teimosia da esposa só a deixasse sair quando já fosse tarde demais. Por isso, revolveu ficar. Não tardou, no entanto, a que um acontecimento viesse precipitar as coisas.
Um domingo, andava Ema a limpar o pó da estante da biblioteca, empoleirada num escadote, quando viu uma forma estranha a ondular perto da janela. Era como que uma sombra transparente de uma criança, algo muito ténue, mas com uma presença muito forte. Julgou ver distintamente os cabelos claros, quase loiros, da irmã, e os braços estendidos para ela. A aparição não durou mais que um instante, mas o susto foi o suficiente para Ema perder o equilíbrio e cair do escadote. Daniel ouviu o barulho e veio a correr. Ema ouviu a voz dele muito ao longe, antes de perder os sentidos. Quando acordou, estava no seu antigo quarto, na sua antiga casa. Sentada ao seu lado, estava a mãe.
– Ema? Não tenhas medo. Estás em casa. O médico diz que bateste com a cabeça, mas não é nada de grave.
Mais surpresa por ver a mãe do que por se achar de volta à sua antiga casa, Ema perguntou:
– O Daniel?
– Está lá para dentro. Vou dizer-lhe que acordaste.
Mas quando a mãe ia levantar-se, Ema surpreendeu-a com uma pergunta:
– O que é que a mãe veio cá fazer?
– Suponho que não te posso censurar essa agressividade... – disse, voltando a sentar-se.
– Por favor, vá-se embora. Eu sei que tem razão, que a culpa foi minha... Ela também voltou para me dizer isso. Mas não acha que já estou a ser suficientemente castigada? Vá-se embora.
– Ema, Ema... Eu nunca achei que a culpa foi tua. Bem sei que te fiz sentir isso quando gritei contigo por a teres levado a brincar no rio, mas depois, quando fomos forçados a admitir que ela não ia voltar a aparecer e tu te tornaste tão triste... Fiquei tão arrependida. Quis dizer-te que não era culpa tua, mas tu afastaste-te cada vez mais e eu não era capaz de falar contigo. Toda a vida me faltou coragem para te dizer que, se alguém tivesse tido culpa, teríamos sido eu e o vosso pai, que não devíamos ter permitido que fossem brincar sozinhas para aquele lugar, sabendo a atracção que o rio era para vocês. Mas agora que tu estás doente...
– Não estou doente – atalhou Ema. – Eu vi-a.
Daniel entrou nesse momento, pois tinha ouvido vozes no quarto e percebera que a mulher devia ter acordado.
– Não vamos voltar, Ema – disse-lhe.
Ema ia protestar, mas ele interrompeu-a.
– Ouve: seja imaginação tua ou não, a verdade é que estás a pôr a tua vida em risco. Não consegues comer, dormir, e hoje, podias ter morrido, quando caíste daquele escadote. Não vou voltar para te ver acontecer alguma desgraça.
Desta vez, Daniel conseguiu convencer Ema. Ele estava assustado e ela não quis ser injusta. Ficaria um tempo na antiga casa e regressariam quando conseguisse convencer Daniel de que já não haveria perigo. Ele conseguiu convencê-la também a deixar-se examinar por um psiquiatra, que concluiu que, agora que ela e a mãe tinham posto os pontos nos “ii”, ela iria, com certeza, melhorar. Mas, apesar de todas as boas intenções, Ema não conseguia afastar o desejo de voltar o mais brevemente possível. Daniel continuava a recusar, embora ela nunca mais tivesse dado sinais daquilo que ele julgava loucura. Mas continuava pálida e magra. Voltar tinha-se tornado uma tão grande obsessão que ela não conseguia pensar noutra coisa.
O psiquiatra aconselhou-o a deixá-la voltar.
– A sua mulher parece-me perfeitamente normal. O único mal que lhe encontro neste momento é essa obsessão em voltar. Vá com ela e se, como penso, ela está bem, não verá mais nada e acabará por se convencer da tolice dessas ideias.
Disposto a voltar, já que era o conselho do médico, Daniel tentou, ainda assim, convencê-la de que o melhor era ficar.
– Escuta. Vamos supor que tu tinhas razão e era mesmo o espírito da tua irmã que te andava a perseguir. Continuas a sentir a sua presença aqui?
– Não. Só naquela casa.
– Então, se achas que ela quer vingança e se só te pode fazer mal naquele lugar, porque queres voltar para lá?
– Não, não! Eu fui uma tola. Ela não me quer mal. Nós éramos gémeas e muito unidas. Quando ela desapareceu e depois chegámos à conclusão que tinha morrido, foi como se uma parte de mim tivesse morrido também. Tenho a certeza de que ela não me quer fazer mal. Acho que está a tentar dizer-me alguma coisa. Eu é que me assustei à toa... Percebes agora porque é que tenho de voltar? Tenho de saber o que ela me quer dizer.
Ao ouvi-la falar assim, Daniel não pôde evitar pensar que o médico estava enganado e que ela não estava tão bem quanto ele julgava, mas, mesmo assim, voltaram.
Para surpresa de Daniel, à medida que os dias foram passando, Ema parecia cada vez melhor. Recuperou as cores e a sua antiga energia, e andava alegre como há muito ele não a via. Ele não sabia que ela continuava a receber mensagens e a ter visões, porque agora que ela se convencera de que tais sinais eram inofensivos, os mesmos já não a perturbavam e ela não tinha dificuldade em escondê-los dele.
Um dia, ao chegar do trabalho, Daniel reparou na grande agitação que havia por trás da casa. A mulher e mais alguns curiosos estavam à beira do precipício que ficava por trás do terraço, e havia carros de bombeiros e também um carro de polícia. Daniel correu a ver o que se passava. Alguns bombeiros tinham descido e outros comandavam as operações. Antes que tivesse tempo de perguntar o que se passava, Daniel ouviu um dos bombeiros que tinham descido dizer:
– Tinha razão, D. Ema. Parece que está aqui um corpo de criança. Ou o que resta dele...
Começou então a formar-se no espírito de Daniel uma ideia do que aquela gente toda ali estava a fazer.
– Ema, não estás certamente a pensar que possa ser...
Mas calou-se, quando ouviu novamente o bombeiro.
– Reconhece isto?
Tinha na mão uma pulseira de ouro, de malha fina e do tamanho de um pulso de criança.
– Tem uma inscrição: “Com amor, da E. para a B”.
Daniel sentiu-se como que atordoado.
– Como foi que?...
– Lembras-te daquele vulto que eu vi na biblioteca antes de cair? Voltou a aparecer e, como percebeu que eu já não tinha medo, deu-me a entender que queria que o seguisse. Trouxe-me até aqui e depois, desceu para o precipício e desapareceu. Compreendi então o que ela me queria dizer. Telefonei ao chefe dos bombeiros, que sabia do desaparecimento da minha irmã, e disse-lhe que julgava que ela estava ali. Perguntei-lhe se podia mandar alguns homens para procurarem o corpo. Ele hesitou, pois acho que também deve ter ouvido dizer que eu andei a ter um comportamento estranho, mas acabou por concordar.
Perante o pasmo de Daniel, que parecia incapaz de articular duas palavras, Ema continuou:
– Compreendi, finalmente, o que ela me queria dizer. Deve ter vindo brincar para aqui, subiu ao terraço que fica por cima da biblioteca e caiu. Ela queria que eu soubesse que não morreu no rio. Ela queria que eu soubesse que a culpa não foi minha. Acreditas agora em mim, Daniel?

FIM

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