segunda-feira, 23 de agosto de 2010

UM SONHO...



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O título que escolhi não designa sonho no seu sentido conotativo de desejo para o futuro. Designa o sonho literal, aquele fragmento de imaginação que passa pela mente abençoada pelo estado de inconsciência que é o sono.
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Não tenho por hábito registar os meus sonhos por escrito. No entanto, já há muitos anos, tive um sonho tão nítido, tão vívido e simultaneamente tão tranquilo e sereno, que de facto o passei para o papel, por não querer esquecer aquelas sensações.
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E embora este seja um espaço de criação literária, parece-me que o sonho, pela sua natureza, pode ser encarado como uma pequena ficção, construída pela minha mente adormecida. Uma ficção sobre a qual eu não tive um controlo consciente, mas que se impôs ao meu espírito.
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Naturalmente que o texto que aqui vou publicar não vai respeitar rigorosamente cada palavra do texto então escrito, que não se destinava a ser divulgado. No entanto, tentarei ser fiel ao espírito (e à idade) com que o escrevi na altura, ainda que por vezes me assalte a tentação de reinterpretar em vez de apenas corrigir. No entanto, se sentir que é de facto imperioso acrescentar algo, fá-lo-ei em itálico, para que se distinga do texto original.
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O SONHO
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Ainda não há um mês, tive um sonho estranho, mas ao mesmo tempo, muito, muito bonito. Esse sonho teve em mim um efeito que nenhum outro tinha tido até então. (E que mais nenhum voltou a ter, acrescento agora, quase vinte anos volvidos). Um efeito maravilhoso que me fez sentir uma felicidade intensa e me devolveu uma paz de espírito que há muito eu tentava reencontrar.
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Na altura, pensei em escrever uma história com base na imagem que esse sonho deixou na minha lembrança, mas receei que mais tarde o efeito benévolo dessa imagem se desvanecesse e eu não fosse capaz de terminar a narrativa.
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Já tive outros sonhos, mas eram sonhos normais, vulgares, que não me provocaram as mesmas sensações intensas. Sonhos que temos uma noite e esquecemos no dia a seguir e por isso não merecem ser registados.
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Um sonho quase nunca é dotado de princípio, meio e fim. E também este foi constituído por imagens sem qualquer introdução ou continuidade.
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A primeira coisa que recordo é que eu era uma rapariga dois ou três anos mais velha do que na realidade. Pelo porte e pelo vestuário, parecia ter vindo de uma Inglaterra algures entre o século XIX e os anos 40 do século XX. E tinha acabado de chegar a um sítio (sei-o porque tinha uma mala de viagem na mão) que só poderia existir em sonhos. Era uma minúscula sala de espera, toda em cimento, onde além de uns bancos compridos, onde estavam sentados uns cinco ou seis indivíduos de outra etnia – possivelmente indiana, a avaliar pelos trajes e pela cor da pele – todos vestidos de branco e com turbantes da mesma cor, a única coisa que existia eram umas quatro portas (embora dessem a sensação de ser infinitas) de metal vermelho escuro e muito velho. Uma dessas portas abriu-se para mim através da mão de um indiano e eu atravessei-a, penetrando assim num mundo maravilhoso. Era uma comunidade de pessoas dessa etnia e aquele mundo era um mundo pequeno, mas repleto de beleza natural, paz e tudo o que é belo.
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Recordo-me de que no sonho, tinha ido para ali para ser uma espécie de mentora naquela sociedade e lembro-me que amava sinceramente aqueles indivíduos como se fossem meus filhos e eles também me estimavam e respeitavam como uma mãe, embora fossem quase todos mais velhos do que eu.
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Mas o que mais me sensibilizou foi a beleza natural desse mundo. No meu sonho, não existiam casas, não existiam cidades; apenas uma imensidão de campos, onde a cor que predominava era o verde. Havia uma espécie de jardim com uma roseira em flor e cujas rosas eram de um cor-de-rosa que não era muito claro, mas também não era escuro. Era um rosa que dava a sensação de ser mais luz do que cor. E passando-se essa roseira, entrava-se numa espécie de lago coberto. Coberto por uma espécie de tecto de cimento e cujas margens eram igualmente passeios de cimento. Recordo distintamente a imagem em que eu passeava lentamente nessas margens, acompanhada de um dos membros da comunidade que eu senti como sendo uma espécie de braço-direito nessa minha tarefa de mentora. Não sei sobre o que falávamos, mas sei que ambos o fazíamos com simplicidade e sinceridade.
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Embora as margens do lago fossem tão estreitas que mal dava para duas pessoas passarem lado a lado e as suas águas fossem terrivelmente profundas, andava-se com uma segurança incrível, com toda a certeza de que nunca lá cairíamos. O lago era a parte mais maravilhosa desse mundo fantástico. Ao conversar, as nossas palavras ecoavam nas paredes de cimento e havia uma sensação de frescura magnífica. E não eram só as nossas palavras que ecoavam, mas também os nossos passos, o que dava uma sensação de uma certa solidão. Não dessa solidão negativa que consome as almas, mas uma solidão sinónimo de paz, de calma.
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A água do lago não espelhava a nossa imagem porque era verde. Não um verde de poluição como aquele que infelizmente nos habituámos a ver, mas um verde natural, resultante talvez de um fundo colonizado por plantas ou algas ao longo de centenas ou mesmo milhares de anos.
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Imagino que se alguém lesse isto, se perguntaria: «Como será o fim?» Bem, isto é um sonho e tudo o que recordo, já contei. Como disse, não há introdução nem continuidade. A razão por que me causou as sensações de que falei, desconheço-a, mas nunca hei-de esquecer esta imagem.
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Não sou psicanalista para saber o que significou este sonho. E de qualquer forma, encararia sempre esse tipo de interpretação como mera teoria…
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Sei que aquilo que pensei na altura – que tinha sido tão nítido e marcante que nunca mais me esqueceria dele – se confirmou. Ainda que não o tivesse registado em papel por receio de perder a memória de algo que me tinha causado sensações tão agradáveis, as imagens continuam bem vivas no meu espírito, particularmente a imagem do lago e a absoluta certeza de que lá não cairia.
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De um modo geral, os meus sonhos com água são sempre sonhos de uma profunda segurança. Lembro-me de uma vez em que sonhei estar numa praia que ficava isolada quando a maré subia. Para sair de lá, era preciso passar a nado para uma outra praia. E embora as minhas capacidades de nadadora sejam limitadas, no sonho, fiz essa passagem com a maior das facilidades e sem qualquer medo. Em outra ocasião, sonhei que estava numa gruta pequena e abobadada, cheia de água e sem pé. Não havia saída à vista. No entanto, eu estava lá tranquilamente, ao cimo da água, sem qualquer sensação de pânico ou claustrofobia. Aliás, creio até que a noção de que não havia saída estava apenas em alguma parte profunda do meu subconsciente e só ao acordar é que se tornou mais consciente.
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No caso do sonho que relatei, a segurança que senti ao andar na margem do lago com a plena certeza de que lá não cairia foi tão completa como nunca tive acordada. Já tive outros sonhos que se aproximaram em nitidez e intensidade de sensações, mas nunca mais tive nenhum que se mantivesse por tanto tempo na minha memória com a mesma força da noite em que o sonhei.
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