quinta-feira, 25 de março de 2010

REFLEXÕES NUM DIA DEPRESSIVO... (Uma reflexão sobre viver com Síndrome Miofascial)

Este texto não tem propriamente introdução, desenvolvimento e conclusão e portanto, não se pode bem dizer que seja uma história... Acho que continuo à espera de um novo desenvolvimento, mas isso pode demorar anos e até nunca acontecer, e se ficar à espera antes de o publicar, pode ficar para sempre numa gaveta, portanto, aqui fica:

Sentada na cadeira de onde evitava sair, Camila cruzou os braços e fechou mais o xaile em torno dos ombros, não tanto para se aquecer, mas como se pudesse espantar aquela humidade que não só lhe tolhia os músculos como lhe encharcava a alma. Morta de tédio, levantou-se para ir até à janela e nem sequer apanhou a manta branca de lã que lhe caiu do colo, como se o desprezo que sentia por aquilo em que a sua vida se transformara se estendesse àquele objecto desprovido de vontade. Observou a chuva que caía lá fora como se o seu rosto fosse uma máscara de inexpressividade. Era uma chuva fria, persistente.
Como era possível uma pessoa sentir-se ao mesmo tempo tão revoltada e tão indiferente?

Tinha havido um tempo – depois dos tempos mais complicados da infância e adolescência, em que parece que nunca somos suficientemente bons para o mundo e o mundo nunca é suficientemente bom para nós – em que tudo na vida a maravilhava. Mesmo os dias de chuva como aquele estavam carregados do seu próprio e mágico encanto. Ouvia as trovoadas com o mesmo arrebatamento com que escutava uma música clássica e a sensação que a invadia era a mesma: a sensação de que o som não lhe entrava apenas pelos ouvidos mas por todo o corpo, invadindo-a até às pontas dos dedos, e que a intensidade – por vezes até a violência – dos trovões ou dos instrumentos tinha qualquer coisa de libertador que a fazia sentir-se mais leve.

Sim, tinha tido dúvidas existenciais que a tinham arrastado por uma depressão profunda e mais tarde, problemas reais, alguns graves, mais difíceis de aceitar por terem sido fruto de erros de outrem e não dos seus próprios. Mas embora fosse verdade, como outros de vez em quando lhe diziam – por vezes em tom acusatório – que isso a tinha tornado mais dura e arrefecido as suas relações com os outros seres humanos, não era tanto o receio de ser novamente magoada, traída ou fosse o que fosse – como diriam os psicólogos, tão certos das suas certezas – que a fazia manter-se de pé atrás a cada nova relação e cautelosa mesmo nas antigas. Era sim o medo – o pânico – das consequências práticas, materiais, que ela sabia agora que podiam ameaçar durante anos, décadas, as coisas que mais temia perder, como um tecto por cima da cabeça.

Mas depois, o seu espírito foi-se reconciliando lentamente com a fatalidade de nem a religião, nem a filosofia e nem mesmo a ciência – em que um dia depositara as suas esperanças e talvez por isso mesmo desconfiasse agora dela ainda mais do que das outras – lhe poderem nunca dar as respostas para as grandes questões com que a humanidade se tem debatido desde a alvorada dos tempos. E como se no seu espírito uma peça há muito perdida tivesse encaixado no seu lugar, percebeu também que a felicidade não está em definir dois ou três grandes objectivos e concretizá-los – ou mesmo só tentar concretizá-los – antes que a morte nos leve. Sim, era bom ter ambições – pessoais e/ou profissionais – mas para ela, agora, elas não passavam de um fio condutor que a ajudava a orientar-se pelo labirinto da vida; tinham deixado de ser a finalidade absoluta sem cuja concretização a vida não valia a pena.

E de repente compreendeu que podia ser feliz se em vez de se debruçar sobre as grandes questões, apreciasse as pequenas maravilhas que o mundo oferece todos os dias. Então, aprendeu a dar valor à presença e ao canto dos pássaros, à transparência macia da água, ao calor morno de um fim de tarde de sol, aos momentos, mais ou menos longos, passados na companhia daqueles de quem gostava. E embora ciente de que isso fora fruto de muito esforço, sentia-se uma privilegiada por trabalhar em algo de que gostava tanto que a profissão não era aquilo que ela fazia mas aquilo que ela era.

E embora por vezes tivesse a sensação de que os deuses tinham decidido antes de nascer que não queriam que ela fosse feliz, pois sempre que um problema grave real ou aparentemente se resolvia, outro igualmente complicado lhe caía em cima, ela afrontava-os sendo profundamente feliz apesar das contrariedades. E assim, tanto o mais radioso dia de sol como a noite mais tempestuosa suscitavam nela um deslumbramento tão grande que parecia não caber dentro de si.

E às vezes olhava para a Camila de antes não com pena, pois tinha demasiado respeito pelo percurso que ela tinha trilhado, até porque sabia que só por causa dele estava onde estava agora, mas com a benevolência de uma pessoa mais velha que vê outra mais nova cometer os seus erros e sorri com ternura porque sabe que não vale a pena tentar chamá-la à razão sobre coisas que só se aprendem com a experiência, mas que também sabe que pode confiar nela para, um dia, encontrar o seu caminho.

Mas foi como se essa nova alegria de Camila tivesse sido o maior ultraje de sempre aos deuses e eles tivessem decidido que desta feita, tinham de encontrar algo que a vergasse de vez. E então levaram a única coisa que Camila valorizava mais do que a própria vida: a saúde.
Um dia, no seguimento de um trabalho que exigiu de si mais do que era costume, Camila começou a definhar. Um cansaço do tamanho do mundo apoderou-se de si e todos os dias o corpo lhe doía como se tivesse sido atropelada por um camião desgovernado.

A mente começou a pregar-lhe partidas. A memória, o raciocínio, a capacidade de concentração, os reflexos, o equilíbrio estavam mutilados. De repente, tinha-se tornado não só fisicamente menos forte, mas também menos inteligente. Isso causou nela uma insegurança que nunca tinha sentido, nem mesmo nos anos mais complicados da adolescência.

Era a primeira vez que enfrentava um problema que não era exterior a si própria. Estava no seu corpo, na sua mente, a torná-la noutra pessoa. E não podia gostar dela porque ao pé da primeira, era estúpida e desastrada.

Camila procurou um médico, que a mandou fazer alguns exames. Mas a crueldade dos deuses não se ficou por aí. Como que para garantir que para esse problema não haveria solução, não permitiram que se visse em nenhum dos exames qualquer espécie de resultado.

Depois de esperar em vão os resultados da terapêutica recomendada, Camila foi ver outro médico. Assim consultou três, quatro, cinco, dez, vinte, trinta... Correu várias especialidades, ouviu várias teorias e embora houvesse uma ou outra parecida, nem por uma vez ouviu duas iguais. E mesmo com a sua nova inteligência estropiada, acabou por perceber o que isso queria dizer: nenhum deles fazia a menor ideia do que ela tinha. Mas também nenhum deles era suficientemente humilde para dizer – não só a Camila mas a si mesmo – “não sei”.

Sabia que se estava doente e os médicos não podiam ajudá-la, ninguém poderia fazê-lo. Por alguns momentos, depositou as suas esperanças no tempo. Talvez ele a curasse. Mas quando percebeu que a evolução era negativa, percebeu que o tempo era um inimigo e não um aliado.

Camila começou a viver como um autómato. Teria preferido morrer, mas não ignorava o golpe que um suicídio seria para aqueles que gostavam dela. Foi nessa altura que descobriu que o maior sacrifício que se pode fazer por uma pessoa não é morrer por ela... é viver por ela. Mas era humana e, mesmo sem acreditar em qualquer espécie de ser superior que a pudesse ouvir e atender, todas as noites, formulava mentalmente o pedido: “cura-me ou deixa-me morrer”.

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